terça-feira, 9 de setembro de 2008

Capítulo 9 - A respeitável Senhora Hick




Os olhos claros de Yan iam marejando à medida que suas faces adquiriam tom ruborizado. O tom das paredes era bege, tão claras que se diriam brancas.
- Escutando atrás da porta?! – falou a mulher altíssima à frente dele. Magra ao ponto de seus cotovelos serem pontudos e suas bochechas sugadas para dentro do rosto, a mãe de Yan parecia querer explodir. Tremia furiosamente, sua pele molhada de suor cheirando a cigarros, os cabelos negros e enrolados presos por uma fita preta mal amarrada no topo da cabeça.
Yan era apenas um menino, uma criança nos primeiros anos da escola. Ainda que um infante, o pequeno Yan era promissor quanto à beleza e a graça. Quando seu rosto moldava-se num seu raro sorriso seu, ninguém poderia manter qualquer nível de seriedade ao ver os dentinhos brancos e formosos. Se chorava – e costumava chorar sozinho jogado sobre as paredes -, as almas mais sensíveis sentiriam os anjos chorarem junto dele. Yan já era alto para sua idade, tão magricelo que se viam suas costelas, as coxinhas redondas por debaixo das calças de moletom. Pequenas mechas negras caiam sobre os olhos tristes, os olhos mais tristes do mundo.
- Me responde, menino! Estava ouvindo atrás da porta? O que foi que você ouviu? Me fala!
O uniforme branco e azul ficava largo no seu corpinho mirrado, a camisa branca parecendo um longo vestido, o que de certo modo era bom já que suas calças escorregavam seguidamente da cintura. Ele se segurava para não chorar de medo. Desviando do rosto da mãe, arriscou olhar o que havia no quarto atrás dela. Uma outra mulher, mais rechonchuda que sua mãe, estava deitada no centro da cama em meio ao breu do lugar, com o aspecto cansado e sufocante, como se estivesse passando mal. Assim que a gorducha retribuiu o olhar macilento em sua direção, seu contato ocular foi interrompido por uma forte pancada no rosto que o derrubou no chão. O susto foi tamanho que o choro não saiu, prendeu-se acima do estômago esmagando o coração. Apenas a boquinha contorceu-se num grito mudo e desesperado.
A porta fechou com estrondo. Sua mãe posicionou-se sobre ele, as pernas mal depiladas abertas, equilibradas nos pés descascados e de unhas retorcidas. O lado direito do rostinho de Yan ardia em brasa, disputando calorosamente com a dor acima do olho esquerdo, que batera com violência no chão encarpetado. Doía muito, dor misturada na sensação de revolta e agonia. A mãe de Yan apontou-lhe o dedo fino e enrugado, quase tocando seu nariz, furiosa.
- Isso é pra aprender a não ser bisbilhoteiro e meter a fuça onde não deve, sua peste!
Na primeira oportunidade que teve para respirar, o menino Yan berrou alto, tão alto, com toda a força que tinha nos seus pequenos pulmões, horrorizado, assustado, apavorado. Era pior, mil vezes pior, do que assistir sozinho aos filmes de príncipes encantados e bruxas malvadas.
- Sai já da minha frente, moleque cretino!
Arrastando-se como um paralítico das pernas, o menino gritava estrondosamente em prantos, e engatinhou ligeiro até conseguir erguer-se, os pés descalços, correndo para o seu quarto no fim do corredor. Tinha impressão de que sua mãe atiraria alguma coisa em sua direção. O quarto nunca demorara tanto a se aproximar, e o pânico cresceu dentro dele. Seus grandes e cintilantes olhos azuis eram nascentes de um novo rio, rio que em breve Yan se afogaria, amedrontado e indefeso.
Chegando finalmente ao quartinho pequeno, Yan bateu a porta atrás de si e continuou a solitária lástima angustiante, empapando a camiseta de lágrimas. Yan tocava seu próprio rostinho de ambos os lados, sentindo as pulsações da pele nas áreas machucadas. Do lado de fora da porta ele escutou o que parecia ser uma discussão entre duas ou mais pessoas, mas nenhuma palavra soava clara para a criança. Aquele choro que clamava por piedade perdurou por quase duas horas, até terminarem-se as lágrimas e restar apenas o esgotamento de sua energia. E a dor.
A dor, enfim, diminuíra bastante quando a noite chegara, mas o latejamento acima do olho esquerdo persistia cruelmente. O menino Yan não compreendia o que o fato de ter ouvido atrás da porta tinha de punível, e nada do que pensasse justificava a reação da sua mãe, antigamente tão amada por ele. O que será que acontecera com a mulher doente? Ela deveria estar muito mal para sua mãe ficar tão embravecida. “Elas poderiam ter brigado”, pensou. Yan seguiu refletindo longamente, mas o medo e o apavoramento impediam o seu raciocínio.
Encolhido sob a porta, Yan sentiu frio e pulou para cima da caminha, cobrindo-se dos pés à cabeça, não sem antes tirar todo o uniforme escolar do corpo: frio ou calor, não gostava de nada o apertando durante o sono. O cansaço o venceu rapidamente, e dormiu o que pareceu ser duas noites em uma. Em determinada hora que não soube dizer qual, Yan escutou sua porta abrir, a luz tímida iluminando seus brinquedos e livros. “É o pai, é o pai...”, torcia ele. Um arrepio percorreu-lhe a espinha à medida que os passos se aproximavam, o temor crescente da hipótese de apanhar outra vez da mãe encarnada.
A coberta foi puxada, destapando sua cabeça, e Yan fingiu estar dormindo, respirando profundamente. Sentiu um leve beijo perto do nariz, onde antes ardia pelo tapa recebido. Os passos se afastaram, e ao estranhar o cheiro que ficara, espiou a sombra no breu do quarto.
Sua mãe arrastava os chinelos e fechava a porta.
Antes de Dyllan falar alguma coisa, Yan, no presente, segurou-lhe pelos ombros tentando acalmá-lo. As paredes deste corredor eram envernizadas e escuras, lembrando uma catedral arrojada, e passavam a impressão de vibrarem a cada trovoada.
- Dyllan, acalme-se! Eu posso explicar.
Dyllan tremeu sobre os pés, reagindo ao movimento inesperado de Yan, que o segurava firme. Ao que Yan percebeu o constrangimento, largou-o e desceu as mãos.
- Sr. Hick, o que fazia atrás da porta?
- Eu não estava escutando atrás da porta... quer dizer, eu estava passando e...
- O que o senhor ouviu, Sr. Hick? – insistia Dyllan, mantendo um respeito digno para com o convidado do seu patrão, que ainda dormia a três quartos de distância.
- Bem, eu confesso que ouvi tudo. Acho que tudo. Se você começou falando dos problemas do chefe, eu ouvi a conversa toda.
Dyllan tomou uma expressão que ao olhar cuidadoso de outrem era inexpressivo. O mordomo dos Kopperden desligara completamente, nem parecia respirar. Yan tentava interpretar a careta sem graça do rapaz. Buscou ajuda nas feições de Philip, estacado no quarto azul, que deu de ombros e caminhou até o banheiro privado.
- Desculpa. Dyllan.
O rapaz continuava mudo. Os olhos tremeram ligeiramente. Yan replicou:
- Vamos para a sala, eu preciso falar com você.
Como Dyllan mantinha-se estático, Yan puxou-o pela mão e levou-o até a sala principal decorada com as cortinas verdes; um imenso quadro de Victor adolescente sobre a porta de entrada, ricamente emoldurado, encarando a todos em cada metro quadrado que se pudesse estar. Na lareira, o fogo constante esquentava o salão. Os sopros do vento do lado de fora das paredes eram agudos, os trovões cada vez mais seguidos. Ulysses encontrava-se no mesmo sofá em que sentara no dia da chegada à mansão, nesta noite acolchoado com grossas e macias cobertas rosadas. O rapaz mantinha seu chapéu amarelo de costuras de variados tons de marrom, e na ponta do nariz fino pairava um óculos de claras lentes. Com os pés sobre o encosto lia um livro espetacularmente grande, com figuras indefiníveis e de título ilegível à distância. Ao ver Yan e Dyllan descerem as escadas, fechou o que estava lendo e colocou cuidadosamente sobre a mesinha central.
- Ulysses – disse Yan -, precisamos conversar.
- Eu e você? – falou Ulysses, voz embargada pela quietude em que permanecera folheando o livro.
- Não, eu e o Dyllan.
Dyllan não compreendeu.
- Conversar o que?
- Eu preciso lhe contar o que eu sei – disse Yan bastante convicto.
Ulysses assistia à cena como se fosse um teatro visto na metade de um ato importante.
- Tudo bem por mim – choramingou ele, levantando-se. – Estarei na cozinha se precisarem de mim – e saiu da sala a passos largos.
Yan puxou Dyllan pela mão e o fez sentar no mesmo sofá acolchoado onde estivera Ulysses, e sentou-se junto ao mordomo. O caso era sério, e não poderia ser discutido de outra forma senão frente a frente, olhos nos olhos. O que ainda era incerto, contudo, na opinião de Yan, era se Dyllan colaboraria numa conversa sincera, sem rodeios e principalmente, que chegasse a uma conclusão.
- Dyllan, posso começar? Você não parece bem, o que foi?
- Ah, f-fale… Sr. Hick – respondeu Dyllan, evasivo como nunca se mostrara a Yan. Durou ainda alguns segundos, mas como uma máquina que acabara de destravar, Dyllan fixou sua atenção ao homem de feições infantis, pescoço largo e braços semelhantes a grossos pilares.
- Como eu disse antes, Dyllan – prosseguiu Yan, agora conformado com a suposta concentração do mordomo -, tenho uma hipótese para as atitudes do chefe...
- Sr. Kopperden – Dyllan interpôs.
- ...e quero apenas que me confirme, ou fale de uma vez por todas o que está se passando aqui. Estou cansado de agir feito um idiota, um ignorante, um desavisado. Afinal, já recebi todo o dinheiro que poderia ganhar. Mesmo com toda a diversão que tenho aqui nessa mansão, e confesso que me divirto muito, eu preciso saber se vale a pena brigar por um homem de postura duvidosa como o chefe.
Dyllan, apesar da concentração, levou um instante para processar o discurso de Yan, e do que dizer ao visitante de perguntas inoportunas.
- O que você pensa ser o problema do Sr. Kopperden?
- Ele é um tarado! – disse outra voz.
Do topo da escada, ainda vestindo o roupão semi-aberto no peitoral, Philip mostrava-se interessado no diálogo.
- No mínimo, um surto que dá de vez em quando – prosseguiu, descendo de dois em dois degraus de pés descalços. Yan aparentava impaciência quando a luz do fogo refletiu no infinito azul de seus olhos, tanto ou mais impaciência do que Dyllan com suas grossas sobrancelhas negras e as características covinhas na testa escondida sobre pequenas mechas escuras do seu cabelo molhado.
- Ah, qual é, parceiros? – esnobou Philip, atirando-se no sofá em frente igualmente coberto por uma colcha rosada, exibindo não somente o peito bem trabalhado mas também as grossas coxas de pêlos loiros. – O primeiro a ouvir qualquer fofoca fui eu. Não estou a fim de ficar só com a metade da historinha infeliz do pequeno canibal.
- Sr. Dungeon! – repreendeu Dyllan.
Yan não simpatizou com a idéia de mais um envolvido naquela confissão que pretendia fazer, sendo tão particular quanto as ondas dos seus cabelos pretos que iam e vinham pelos seus ombros, mas não tão indiscreta quanto eles.
- Enfim – continuou, não encontrando outra saída para a presença descabida de Philip -, eu não acho que seja loucura. É um tipo único de transtorno.
- Ah, fala sério... – caçoou Philip, dando um tapa na própria perna desnuda. – Por acaso ele tem "TIC"?
- É TOC – corrigiu Yan -, e não é esse tipo de transtorno.
- Bonitão, eu conheço o tipo.
- Do que você está falando?
- Isso é doença.
Em frações de segundo, uma parte de sua vida, senão toda ela – que seja uma considerável, uma das de maior importância – percorreu as memórias de Yan.
Yan passara a infância escondido pelos cantos de qualquer lugar temendo o próprio medo. Medo das coisas que eram maiores que ele, do que era pesado, do que não quebrava, do que explodia. Medo da luz, medo do fogo, da água, da chuva, da água da chuva, medo da coberta cair durante a noite e congelar.
Medo das pessoas ele jamais teve. Seu nível cultural sempre fora mais avançado que seus colegas de turma, e o mundo que conhecia nos filmes dos adultos, nem naqueles do tão nobremente admirado Ian McKellen, nunca chegara a causar-lhe aflição. Se algo o incomodava, ele dava crédito às pessoas, pois as pessoas eram construtoras das coisas, controladoras das próprias criações, e nenhuma pessoa pensaria, na consciência do bem, em agir de má índole para com o próximo, ao menos não de propósito. O mal nunca é feito de propósito, pois a intenção, por pior que pareça, sempre argumenta com o bom, na boca de todos os agentes. Ele não acreditava na maldade, como um fator comportamental dos seres humanos. Afinal ele sabia, conhecendo a mãe que tinha e que enchia a boca para falar, que “o que parece ruim é na verdade bom demais”.
À medida que crescia – o que a genética contribuiu para ser um processo mais rápido e avantajado que o normal – o garoto Yan conhecia uma nova parte do grande quebra-cabeça ambulante que era sua mãe, a respeitável Sra. Hick.
À mínima possibilidade de atrevimento à mãe, Yan sentia cada membro de seu corpo afugentar-se mais para dentro. O garoto que era uma criança completamente indefesa e tomada de dúvidas crescera, já tinha seus felizes e belos quinze anos, adquirira porte, firmeza no corpo, as calças não caíam mais, seus pensamentos se tornaram maiores. Porém as dúvidas persistiam, e cada vez mais sua mãe era uma incógnita.
Diversas eram as discussões entre a Sra. e o Sr. Hick, nem sempre envolvendo Yan. O garoto, de cabelos um tanto oleosos e crescidos, freqüentemente presenciava os conflitos, mas nunca dissera uma palavra. Por parte do pai, Yan reconhecia as dificuldades em conviver com uma pessoa de personalidade tão conturbada e variável como a mãe; da parte dela, talvez a única mágoa fosse a passividade com que seu pai agia, possivelmente pela falta de “punho forte” na criação do filho único.
E foi do pai que Yan herdara o comportamento imparcial, não tomando partido de briga nenhuma, até porque ele mesmo nunca brigara diretamente com ninguém. Como é da base que se chega ao topo, como a lava vem de dentro da Terra e esguicha da ponta do vulcão, houve um dia em que Yan resolveu prestar mais atenção nos pais e em cada argumento que diziam. Era uma noite de segunda-feira, e na TV passava uma notícia sobre uma famosa menina desaparecida há mais de um mês na cidade vizinha a sua. Yan tomava um leite morno antes de se deitar, escorado na pia da cozinha. O pai de Yan, um senhor de idade que já tivera seus dias de virtude, de óculos amarelados, curvado e rouco, tinha a voz ainda mais escapada do que de costume em meio a discussões.
- O que aquela mulher estava fazendo lá em cima, Alicia?
Sua mãe demorava em responder às perguntas que não tinham resposta, ou que definitivamente não estava disposta a dar explicações.
- O que eu faço com elas, seu idiota?
- Eu não sei, Alicia. Nunca estive presente nessas horas. E não foi a primeira nem a segunda vez que eu vejo uma mulher maltrapilha sair daqui.
- Você que não presta atenção! – esbravejava ela, ajeitando confusamente a disposição de algumas panelas na parede da cozinha de ladrilhos amarelos, decorados com frutinhas coloridas em pequenos cestos. Por vezes suas mãos se agitavam, dando a impressão de que o objeto escaparia da mão dela.
- Quem era aquela mulher, Alicia? Me responde, por favor, não agüento mais esse sofrimento.
- Ah, mas como você sofre, John! Por que não procura motivos para sofrer de verdade, como se colocar no meu lugar, por exemplo! Ver as coisas como eu vejo, sentir o que eu sinto toda a vez que tenho que deitar na mesma cama que você, suportar a sua respiração toda maldita noite!
O pai de Yan guardava a cabeça baixa. A menina desaparecida na TV era filha de uma atriz de cinema. Yan notou que ela nunca contracenara com Ian McKellen em qualquer filme que tenha visto dele. John aparentava cansaço.
- Isso não é bom, Alicia, não faz bem.
- Se não é bom para você, é bom para mim.
Silêncio, só a TV e risadas do vizinho.
- Alicia, você não me respondeu o que aquela mulher veio fazer aqui.
- É uma das sessões, seu desmemoriado – respondeu grosseiramente a esposa.
- E o que você faz nessas sessões?
- Ora, ora! – disse ela, gingando no lugar em que estava como num passo de dança esquisito. Yan não prestava mais atenção na notícia da TV. O leite estava quase no fim. – Agora o senhor está interessado no que eu faço?
- Só responda...
- Não vou responder nada! Já chega dos seus interrogatórios!
- Alicia, estou tão cansado disso...
- Você está cansado!? – gritou ela, levantando a panela de alumínio que tinha nas mãos na direção do marido. – Pois eu estou exausta, esgotada até a alma dessa palhaçada! Eu não tenho que dar satisfações para você! Quando é que eu te pergunto alguma coisa?
John emudecera. Algumas lágrimas rolaram por debaixo dos óculos remendados. Yan queria sumir, ao menos poder desaparecer como a filha daquela atriz de cinema.
- Ela é uma amiga, uma cliente minha! E chega, já chega de me explicar para você!
Yan bebeu o último gole do leite que esfriara. Virou-se para a pia e ligou a torneira. Enquanto a água gelada lavava a xícara, John disse o que Yan jamais esquecera, o que mudara talvez não somente a noção de quem sua mãe era como também de todas as pessoas que conhecia, e de quão grave isso poderia ser para eles, para sua mãe, para o seu pai, e para ele mesmo.
- Alicia...
- O que é?!!
- I-isso é doença.
Yan desligou a torneira, colocou a xícara no escorredor de louça e preparou-se para subir ao quarto. Sua mãe permanecia no mesmo lugar estarrecida, com a mesma panela na mão. Mesmo assustada e com aparência indefensável, sua mãe nunca esteve com aqueles olhos, os olhos mais furiosos do mundo.
Sem saber direito o que fazer, e transtornado o suficiente para permanecer em meio ao fogo cruzado, Yan dirigiu-se às escadas. Seu braço, entretanto, foi agarrado pela mão fria e ossuda de sua mãe.
- Você fica aqui, garoto, pra ver o estrago que vou fazer com esse infeliz!
Dessa vez foi Yan que segurou seu braço, onde Alicia segurava a panela.
- Mãe, não bate nele. Ninguém vai bater em ninguém.
- Me larga, moleque cretino! – espraguejava ela, sacudindo-se violentamente.
Yan não disse mais nada. Bastou um puxão para que pudesse arrancar a panela das mãos da mãe e colocar de volta na parede.
- Você não entende, Yan! Não entende!
- Isso é doença... – repetia o pai, chorando e de cabeça baixa.
- Doente é você, seu salafrário!
- Eu vou subir – dissera Yan pulando os degraus que o levariam para cima, ao que sua mãe redargüiu:
- Você não é diferente de mim, Yan! Não é.
Rapidamente chegou ao quarto, não muito diferente do que era há alguns anos a não ser pela menor quantidade de brinquedos e objetos coloridos. O quarto era azul, um azul que só perdia em profundidade com seus olhos que, levemente marejados, brilhavam tristes na fina luz da lua que assaltava pela janela por entre as brechas da persiana.

Yan retirou a camiseta comprida e atirou-a na cama. Alisando os cabelos e esfregando as mãos nos braços, Yan não atingia nenhum estado de compreensão. Sua mãe continuava um ponto de interrogação, inexplicável. Era um tumulto tão grande em sua cabeça que nada mais poderia se esclarecer, e pensou que a única rota de fuga era o sono, o sono e o sonho, qualquer sonho, um sonho bom, longo e quente.
Lá embaixo a discussão parecera terminar. Yan ouviu um barulho de porta se fechando, estrondosamente, fazendo vibrarem os vidros da pequena janela, divididos em cruz, na frente das persianas. Sem bater ou anunciar a entrada, o pai de Yan surgiu de súbito, inconveniente para a vontade de Yan de cair na cama e apagar em menos de um minuto.
Próximo à janela, a luz da lua entrecortada refletindo no seu tronco desnudo, Yan decifrava as expressões conflituosas do pai que lento e aparentemente manco se aproximava, sem levantar a cabeça um instante sequer. Parou, enfim, a um passo de distância. Yan virou-se por completo para ele, esperando qualquer coisa, um sinal, uma fala, uma reação, um tapa que fosse, mesmo que isso não corroborasse com o perfil do pai.
A mão de John Hick subiu e apoiou-se no ombro iluminado de Yan pela luz da lua. Um soluço preencheu o silêncio do lugar. O Sr. Hick segurava-se para não chorar, agonizante. A mão desceu de leve, até segurar o peito esquerdo do filho alto e esbelto, agora estático. Outro soluço, seguido de mais um. Um leve aperto no peito macio, e depois outro. John Hick forçou-se a encarar o filho. Pai e filho, ambos atônitos, um na insegurança, outro na dúvida; um no remorso, outro no receio; um na vergonha, o outro também. John Hick subia e descia a vista no corpo saudável do filho, duas, três lágrimas lavando sua cara envelhecida que balançava lenta e negativamente, os óculos embaçados, a boca torcida sem expressar uma sílaba. A mão desceu mais, escorregou nas dobras do abdome, resvalou pro lado, apertou a cintura. John Hick chorava, e o filho também.
Em um surto desesperado, John Hick saiu apressado do quarto, em prantos que agora preenchiam a casa inteira. A porta se fechou, e Yan pensou, pensou, e pensou em não querer pensar, e então não pensou em nada. Deitou, e dormiu. Não sem antes tirar a roupa toda, e chorar um pouco mais.
- Isso é doença, não pode ser outra coisa – seguiu Philip, balançando a mão, insistente na idéia.
- Não – prosseguiu Yan, como se não tivesse revivido em instantes aqueles momentos dramáticos -, é um transtorno.
- E transtorno não é doença? Poxa, o cara não é normal. Uma hora ele tá bem, na outra ele tá babando por qualquer um de nós. Já viu as perguntas que ele faz? “Como vocês gostam de se divertir, senhores?”, ou “vocês todos começaram cedo como o Damien aqui?” ou “algum de vocês quer casar comigo?”, ah, qual é! Quem, em plena sanidade, tem como objetivo casar com um garoto de programa? Ele não tem nojo, não tem medo? Não tem vergonha na cara?
Dyllan saia devagar do pequeno transe que insistia em permanecer, e que persistira por longos minutos, mortificado pelos fatos terem fugido do seu controle. Controlar Victor estava difícil com outras quatro companhias para se preocupar. Resolveu, por fim, entrar na conversa.
- O que falta no Sr. Kopperden, talvez, seja bom senso. Eu... – “Eu já disse isso para ele”, pensou consigo.
Philip riu forçadamente, como se achasse o comentário o mais engraçado da semana.
- O que falta pra ele é uma foda bem feita, guri! – retalhou ele, indiferente à vermelhidão do rosto do mordomo. – O cara se veste bem, tem dinheiro caindo do bolso, mas a cabeça tá fora da órbita!
- Ele é bipolar – disse Yan entre dentes.
- O que? – disseram Dyllan e Philip.
- O Victor é bipolar.
- E isso não é doença? – interrogou Philip.
- Não, não é! – esbravejou Yan, visivelmente furioso, levantando de súbito. Philip contraiu-se de leve no sofá, mas ao ver o homenzarrão se dirigir à lareira preocupou-se em ajustar o roupão ao peito.
- E... como você sabe? – perguntou, solene.
Yan remexia as brasas da lareira com o atiçador enegrecido. Os feixes do fogo reluziam nos seus olhos melancólicos. Media as palavras.
- Saber eu ainda não sei, mas desconfio fortemente. Espero que você confirme, Dyllan.
- Baseado em quê? – seguiu Philip.
- A minha... eu conheci uma pessoa, e ela tinha um comportamento parecido.
- Uma viciada em sexo?
- Não! – berrou Yan. – Não. – disse, baixando a voz. – A... ela era calma na maior parte do tempo, regulada até. Tinha dias em que ela era a pessoa mais doce do mundo, tinha tato comigo, com meu pai... lia diversos livros, até de auto-ajuda. Fazia projetos, comprava presentes, ia correr na rua. Era professora de matemática. Sei que por uma palavra mal interpretada ela mudava radicalmente... Uns olhos furiosos, um fogo tão forte, tão desesperador que eu tinha medo, que queria fugir, mas não podia. Tinha que ajudá-la.
- Quem era essa mulher?
- Eu até tentei ajudar – prosseguiu Yan, ignorando a pergunta do rapaz de roupão apertado -, e tentei muito, dando tudo de mim, as energias todas que tinha comigo, até a energia que buscava dos outros... – “...dos outros que eu nunca tive medo antes”, pensou sozinho.
Dyllan ajeitou a postura no sofá, esticando as costas e alisando as ombreiras do uniforme.
- Sr. Hick, eu ouvi s-seu discurso, mas...
- Eu tentei ajudar, e não consegui – cortou Yan, passando o atiçador por cima das labaredas da lareira. - Mas não foi culpa minha.
Dyllan prosseguiu:
- Sr. Hick, t-tudo que o senhor disse não encaixa no comportamento do Sr. Kopperden. É uma observação p-prematura e ingênua.
- Ele não deixa de estar certo – concordou Philip -, mas na hora que você falou do comportamento que mudava de uma hora pra outra, isso é verdade. O teu chefe fez uma dessas lá na caverna, por isso que deu essa merda – e apontou bruscamente para onde escondia-se o membro ferido. - A gente tava molhado, eu tirei a roupa, pra secar numa fogueira que a gente fez lá, eu tava com frio, mas o loirinho tava mais, aí eu abracei ele. Do nada ele disse “foda-se” – Dyllan baixou os olhos para os pés da mesinha de centro onde o livro de Ulysses, “Manual de Monitoramento”, se encontrava – e baixou minha cueca!
- Isso é verdade?! – espantou-se Dyllan. Até Yan virou-se para averiguar a realidade dos fatos nos traços de Philip.
- To falando! Ele baixou minha cueca, e pra ser sincero o cara chupa bem pra caramba – Dyllan levantou-se e virou de costas para Philip, que falava em meio a conturbadores sorrisos da experiência fatídica na caverna -, nossa mãe! Tava tudo muito bom, eu fiquei até com calor, com vontade até de fazer outras coisas, até porque nunca tinha feito nada em caverna nenhuma, não nesse tipo de caverna – e riu do gracejo infortúnio. – Mas na hora que eu tava pra gozar o cara não pega e me morde? Cara, que dor do caralho! Mistura das mais loucas, cara, muito prazer e muita dor, tudo junto! Mas não pensa que foi bom porque não foi, não gosto dessas coisas sado.
- Maso – corrigiu Yan.
- Não foi o que eu falei?
Ulysses, vindo da cozinha, usando os óculos que destoavam do seu traje casual, caminhou sonoramente até o centro da sala.
- Esqueci meu livro – disse. – Já vou subir, boa noite.
- Uma ótima noite, Sr. Loyola – desejou Dyllan, olhar fixo num dos vasos chineses. O vaso da terra. Balançou rapidamente a cabeça, enquanto voltava-se novamente para os dois rapazes na sala.
- O senhor quer dizer que esse comportamento inesperado do Sr. Kopperden tem a ver com o tipo de postura da mulher de que o Sr. Hick nos contou?
- Claro que sim! O cara tá bem, aí fica mal, aí fica com tesão, aí me morde! Ele se comporta sempre com... como é que é...
- Inconstância – completou Yan. – Comportamento volúvel. Sempre mudando de um nível para o outro. Subindo e descendo, entre dois pólos.
- Ah – gemeu Philip, esticando a expressão, pensativo -, bi-polar.
Yan mantinha infinitos argumentos para serem ditos ainda, mas um cansaço repentino tomou conta de todo seu corpo, pesando mais na sua cabeça. Passou a mão que antes segurava o atiçador pelos cabelos, num movimento que vinha da testa e terminava afagando as mechinhas que insistiam em virar para fora, como em cachinhos. Nada mais tinha a declarar naquela noite. Não importava se Dyllan confirmasse sua teoria ou não. Queria de novo cair na cama, depois de tirar a roupa toda, cair e sonhar, coisas boas e quentes. No caminho do quarto passaria pela cozinha e pegaria um leite morno. Ou podia dizer à Dyllan, ou pedir mais tarde pelo interfone privado do quarto. Se deixasse pra depois, contudo, talvez esquecesse do leite morno e dormisse com a garganta seca e o estômago vazio.
No andar de cima, uma porta se abriu ao longe, rangendo de leve. Em poucos passos apressados, Damien chegou à balaustrada, olhinhos fundos e com um pano úmido e aquecido nas mãos.
- Ele acordou – disse baixinho lá de cima, com sua voz límpida.
Dyllan apressou-se pelas escadas, ultrapassando Ulysses e seguido por ele. Philip lutava contra a vontade de permanecer recostado no sofá coberto com a colcha rosada; por fim, subiu. Yan encarou Damien, que insistia em observá-lo profundamente dentro dos seus olhos, como uma criança ao ver algo estranho ou novo. Yan estava feliz, mais por Victor e menos por ele mesmo, em seu altruísmo sempre presente. Felicidade, e só isso. Afinal, tinha uma chance naquela casa de fazer algo por alguém que de certo modo também lhe dava medo. Todos lhe davam medo, com seus comportamentos inesperados, de fúria ou de libido à flor da pele, sendo doentes ou não, mas a coragem surgia no fundo do seu coração. Talvez uma xícara de leite morno contribuísse para encorajá-lo. Ele poderia ajudar dessa vez, ao menos tentar usando tudo que sabia.
Lá de cima, Damien sorriu, chamando-o num gesto com a cabeça. Yan estava relaxado, leve. Virou-se e focalizou o espião constante pintado e eternizado nos traços perfeitos do quadro sobre a porta; Victor era belo desde jovem, os fios dourados dos cabelos e a boquinha cor de rosa. A intranqüilidade fugira dele, queimou na lareira junto às suas mágoas. Os olhos azuis e intensos vibravam, alagados de alegria.
Os olhos tristes, os olhos mais tristes do mundo, sorriam.






*****

sábado, 6 de setembro de 2008

Próxima postagem... (dia 09/09/2008)


O estarrecimento tomou conta de Dyllan ao ver Yan Hick parado diante da porta. Ouvira ele alguma coisa comprometedora sobre Victor Kopperden? Será que ele tem algo para falar sobre isso? Mais do que se imagina.

Descubra no "Capítulo 9 - A respeitável Senhora Hick".