quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Capítulo 10 - Fatores






Ao que tudo indicava, Victor recuperara os sentidos sem nenhum dano sério. Sua cor retornara às faces e seu corpo parara de transpirar, possivelmente devido ao frio que fazia dentro do casarão pela chuva incessante. Quando Dyllan chegou ao quarto, seguido logo por Ulysses e Philip – esse receoso de que o dono da mansão pudesse ter algum tipo de ataque surpresa -, foi como se perdesse metade do seu peso corpóreo. Ver seu patrão acordado, ainda que permeasse um vazio nos olhares vastos do Sr. Kopperden pelo quarto, bastou para um sorriso... ligeiro. O bom empregado é sempre um bom empregado, e a hora agora era de conter o mínimo de emotividade para atender a toda e qualquer demanda daquele que o tinha autoridade constante.
- Sr. K-Kopperden? – gemeu Dyllan, caminhando apressado com seus sapatos ainda sujos de grama molhada. – Sr. Kopperden, está tudo bem com o senhor?
- Dyllan, olá... – falou Victor com voz baixa, tentando levantar-se.
- Senhor, o senhor não está em condições de levantar ainda. Você... o s-senhor sofreu uma grande agitação, é melhor permanecer deitado.
Victor relaxou novamente e caiu de volta no travesseiro, seus cabelos claros espalhando-se pelo travesseiro de seda fina. Yan e Damien apareceram, o moreno de olhos azuis com a aparência de quem visita um recém-nascido. Victor mexia-se inquieto.
- Dyllan, eu estou um pouco confuso com o que aconteceu...
- Não se preocupe, Sr. Kopperden, está tudo bem agora. Foi apenas um susto, um susto...
Philip se contorceu ao lado da extravagante penteadeira bege.
- Para você, Dylly-willy, foi tudo apenas um susto – disse.
Victor fechou os olhos à luz de um relâmpago que iluminou o quarto em um flash e reverberou dentro da sua cabeça. Passou a mão delicada sobre o rosto, quente e febril. O ar parecia pesado, e em sua cabeça ia e vinha uma onda invisível que por instantes o tirava da realidade e levava-o longe dali, rodopiando em uma roda-gigante inexistente, em um parque longínquo, em um mundo de fantasia despropositada, ausente de solidez, de afago e de colo. O amor ficara lá fora, ou não era percebido aqui dentro. Amor havia, mas amor não era visto. Sentido, sim. O calor vinha do amor, vinha da febre. Febre de amor.
Giros incessantes, flashes, estrondos. Seria a tempestade ou seria seu coração? Bastaria um raio ou toda a energia dos céus para dissipar a dolorosa existência de estar presente, para rasgar o peito e cicatrizar na mesma hora a ferida aberta pelo impulso, pela ânsia em ser completo por alguns instantes finitos, pelo desejo capaz de dizimá-lo à primeira vista do corpo alheio. Ignore-se o ser, ignorem-se os fatos, a verdade é nua e crua, e preferencialmente nua, rígida e perfumada. Nudez contagiante, perfume inebriante e a sensação de vazio e queda. Constantemente o sopro que não se sabia originário de fora do corpo ou de dentro dos ossos, na ebulição dos músculos, que atravessava os poros, que expelia pelos pêlos, e arrepiavam-se um a um, quase ao mesmo tempo. Tempo indefinível que também rodopia no relógio, no rosto do anjo que o olhava. Ele era tão real, tão vivo e tão branco, e lhe estendia a mão para acarinhá-lo, fazê-lo sentir-se sadio, curado e estático. Queria que tudo parasse, mas algo insistia em bater. Cem ou duzentas vezes por minuto, aqueles segundos relativos, que pulsavam naquele peito machucado, aberto em fogo elétrico, e fechado pela realidade inexorável.
Nada mais importava. Ele ainda era um príncipe.
- O senhor precisa de mais compressas e uma boa noite de sono – prosseguiu Dyllan, ajoelhado na beira da cama. – Melhor eu fechar as... janelas.
Damien, de pé atrás da grande cama, puxava duas alavancas que escoravam as janelas envidraçadas. Compelidos a ajudar, Yan e Ulysses fecharam as cortinas claras de cetim que seguiram balançando com a brisa que insistia em ultrapassar pelas frestas.
Philip retirou-se em silêncio do quarto, sem nada a dizer que não soasse agressivo para o enfermo. Ulysses aproximou-se de Damien, que analisava algum ponto na escuridão do lado de fora. Passou um braço por trás do garoto e comentou:
- Ele acordou de repente?
- Eu não vi, caubói – respondeu o vigilante, a mesma voz mansinha. – Na verdade foi ele que me acordou, porque eu estava dormindo ali – e apontou para onde se encontrava Dyllan.
- Você é um anjo, Damien – complementou Ulysses, beijando seus cabelos e apertando-o contra o corpo.
Dyllan fazia outra compressa para Victor que, tonto do jeito que estava, fechara os olhos e caíra no sono outra vez.
- Sr. Loyola? – chamou Dyllan.
- Sim?
- Nos dê licença um minuto. Preciso falar com o senhor... Damien.
- É claro. Já vou dormir. Boa noite.
Ulysses, após passar ajeitando o longo rabicho castanho sob o chapéu, encostou a porta, dando privacidade aos garotos. Dyllan ergueu-se e fez a volta pelo criado-mudo onde deixara a vasilha de água quente, que jazia morna naquele momento. Próximo de Damien, o mordomo franzino buscava palavras para expressar sua gratidão e apreço. Pôde reparar no rosto sonolento do garoto, as mechas castanhas levemente desarrumadas.
- Espero que pare de chover – disse ele, cortando o silêncio para ativar sua desenvoltura inata. Damien mantinha seus olhos marrons esverdeados na floresta densa e agitada ao longe. A impassibilidade de seus olhos refletindo os clarões da tempestade intimidava Dyllan de modo perturbador e indecente.
- Eu gosto da chuva.
- O senhor gosta?
- Gosto. A chuva enclausura a gente.
- Entendo – balbuciou Dyllan, sem entender muito bem. – Nos torna introspectivos, é isso que o senhor diz?
- Pode ser. Mas não. A chuva manda todos para casa. Os seres naquela floresta se escondem, e as pessoas também. Cada um vai para o seu canto, protegido dos outros. Menos da chuva. – Damien tinha o costume de falar misteriosamente, o tom enigmático de sua voz inquirindo um milhão de dúvidas na mente de quem o ouvia. Era realmente difícil prestar atenção e compreendê-lo ao mesmo tempo.
- Mas a chuva não era boa? – insistiu Dyllan.
- Claro que é – respondeu Damien, encarando Dyllan com doçura. - A chuva não pensa.
Ao ver Damien sorrir, Dyllan sentiu liberdade para mostrar seu reconhecimento.
- Sr. Damien, eu q-quero agradecer o cuidado que teve com o Sr. Kopperden.
- Não fiz nada – falou Damien com rapidez, retornando a visualizar as árvores dançantes e obscuras.
- Mesmo que pense que não, muito obrigado. Pelo senhor Kopperden e por mim.
- Você está preocupado – soltou Damien, concentrado na chuva e ignorando completamente a gratidão do rapaz.
Dyllan não era do tipo que se abria com ninguém; suas mais fiéis colegas de trabalho, que não enchiam os dedos de uma mão, sabiam da sua rotina, e uma ou outra vez de alguma dor de cabeça que ele pudesse estar sentindo. Naquele momento, em especial, sua testa era oprimida como se a empurrassem por trás dos olhos, imprimindo algumas linhas de expressão por baixo dos fios negros descompostos dos seus cabelos ainda molhados.
- É, estou, sim – confessou Dyllan naturalmente. Não seria arriscado ter uma simples conversa com aquele garoto. Ele era o único, na sua opinião, que parecia diferente. Desconfiou disso pela idade relativamente próxima, o que não lhe dava crédito de julgamento por Damien ainda ser um adolescente.
- Dá para perceber sua preocupação. Você é transparente, e do modo que eu vejo, isso não é uma fraqueza.
- N-não entendo, senhor Damien. – Dyllan tinha desistido de desvendar o sobrenome do garoto.
- Dyllan, o quanto você gosta do Victor?
O mordomo lançou suas vistas em cada olho de Damien, bem dentro das íris castanho-esverdeadas, captando as incertezas das palavras daquele garoto. Era uma pergunta íntima demais, porém da qual ele não tinha nenhum segredo.
- O que isso tem a ver? – disse ele mesmo assim.
- Estou perguntando por curiosidade.
Dyllan ponderou. Damien, entretanto, merecia um crédito.
- Você já cuidou de alguém? – Dyllan lançou a pergunta, tentando arranjar a melhor justificativa.
- Eu tenho minhas histórias. – Era incrível a capacidade de Damien falar sem alternar o volume da sua voz em nenhuma sílaba pronunciada. Seu olhar mantinha-se no farfalhar furioso do vento sobre as folhas das árvores no lado oeste da mansão, as copas dos pinheiros entrechocando-se como se lutassem. Em algum lugar da casa, o vento entrava por um pequeno espaço, resultando em uivos grotescos, a ventania a declamar seu canto melancólico.
- Se cuidou de verdade, sabe o que sinto. – Dyllan falava seriamente, um tanto sombrio.
- Eu posso supor, mas não sei exatamente.
- Por que tamanha curiosidade?
- Por que tanto medo em me responder?
Os dois rapazes agora encaravam-se num misto de rebeldia e convicção, o que em nenhum momento se transformou em agressividade.
- O senhor Kopperden é especial. Eu o admiro.
- Isso é clichê – cortou Damien, novamente interessado na tempestade fulminante. Dyllan ficava impaciente.
- É claro que gosto do senhor Kopperden. Nós convivemos há quase dez anos, e conheço muito dele, talvez mais do que ele possa imaginar. – Dyllan, balançando a cabeça em confusão, não acreditava que dizia essas coisas a quem, independentemente do caráter compensador, vendia-se a outras pessoas. – Eu o considero um protetor, que deu abrigo a mim e a meu pai. A gente... sofria muito antes de parar aqui no casarão. Fora isso, eu admiro muito o senhor Kopperden, de diversas maneiras.
- Diga-me uma delas.
- Ele é um homem sozinho, com todos os problemas que a solidão pode gerar, e ainda assim é um ser humano excepcional... enfim, admirável.
- O que você admira nele? – Damien agora encarava Dyllan, que por sua vez contemplava o ressonar de Victor em seu tranqüilo respirar.
- São tantas coisas que nem sei por onde começar. O senhor Kopperden sempre foi bom para mim e...
- Não se prenda à relação de empregado e patrão, Dyllan. Eu quero saber de você como alguém presente na vida dele, alguém com íntima relação a ele.
Dyllan não gostou da palavra “íntima”. Não sentia-se confortável para falar da intimidade que tinha com o seu patrão, porém estava curioso para ver em que ponto Damien buscava chegar.
- O senhor Kopperden é um homem inteligente e extremamente educado. Há nele uma dor e uma frieza tão grandes pelas desgraças que lhe caíram sobre os ombros... a perda da mãe, a autoridade do Sr. Anthon Kopperden, seu pai... mas de alguma forma esse peso transforma-se em uma sensibilidade e afeto que nunca vi em outra pessoa. Você devia ler suas poesias!
Damien manteve-se em silêncio. Lera algumas que encontrara naquela gaveta suja, e gostara de verdade.
- Ele não as mostra para ninguém, nem para mim, mas volta e meio encontro um papel perdido entre suas roupas. Eu acho difícil entendê-las, mas a linguagem é muito bonita. Ele diz que é um modo de ele desabafar com ele mesmo, então não mostra para ninguém. Deve ser um modo de aliviar os problemas...
- Entendo.
Ao chegar ao assunto dos problemas pessoais de Victor, Dyllan preocupou-se em desviar de possíveis questionamentos sobre a saúde de seu patrão.
- Você, assim como os outros... rapazes, não o conhecem direito. Eu tenho grande respeito por quem o Sr. Kopperden... Victor, é. Tenho admiração pela sua força. E medo do que possa acontecer se ele escolher a pessoa errada para passar o resto da vida.
- O fato de essa pessoa ser um homem não lhe incomoda?
Dyllan respirou fundo. Ao longo do tempo em que trabalhava para Victor, as perguntas sobre sua sexualidade eram-lhe tão constantes que ele tencionava ignorá-las.
- Os gostos, preferências...
- Condições? – interpelou Damien, acompanhando atento o discurso.
- Como quiser, só cabem a ele e mais ninguém. Nem mesmo eu, como um... amigo próximo a ele, tenho direito ou motivos para desaprovar seus... costumes.
- Amigo próximo? Pensei que você se considerava apenas um empregado, um mordomo, um governante dedicado.
Dyllan estava tonto, a dor de cabeça embaralhando seus pensamentos.
- Certas posições profissionais exigem uma boa relação. É mais do que um trabalho para mim.
- Você cuidaria dele de graça. - Isso quase fora uma pergunta, mas Dyllan preferiu o silêncio, os trovões a responderem por ele. Perpassou um momento de silêncio no quarto, interrompido apenas pelo aparente fim do mundo do lado de fora da casa. Em determinado momento, pôde-se ouvir a leve respiração de Victor, o peito embranquecido destampado pelo lençol, em um calmo sobe e desce.
- Há duas coisas que posso concluir disso – disse Damien por fim, surpreendendo Dyllan pelo inesperado raciocínio. O que poderia ser?
- Explique-se. – Era a única maneira de ficar sabendo o que se passava pela mente daquele garoto tão novo e tão capcioso.
- A primeira delas: você ama o Victor.
Dyllan percebeu que suava por debaixo dos cabelos molhados, as gotas escorrendo até as sobrancelhas grossas e negras. Obrigou-se a passar as costas das mãos para desembaciar a visão. Damien parecia consciente de suas palavras.
- O que você...
- Você o ama – continuou Damien. – Quando se diz “eu te amo” a alguém, isso é gerado de uma série de fatores que muita gente desconsidera. Inclusive você.
Dyllan não sabia se era a dor interminável que dominava todo seu crânio ou se fossem as palavras possivelmente mal interpretadas que não traziam clareza às menções de Damien.
- Quando se diz “eu te amo”, Dyllan, você também diz “eu lhe quero bem”, quer o outro feliz, saudável, em paz. Quando se diz “eu te amo”, está dizendo também que respeita que o outro é e admira a outra pessoa pelas coisas que ela faz, pensa e cria. – O tom de voz do garoto continuava inalterável. Dyllan sofria suaves vertigens.
- Não creio que seja tão simples assim. Não é fácil explicar o amor.
- É claro. Mas é tão fácil senti-lo, não acha?
Novamente o estouro dos raios lá fora preencheram o silêncio.
- Você, admirando, respeitando como diz que o respeita e querendo o bem do seu patrão, o ama. – Damien permanecia estático, posando como um manequim encostado à cortina. Dyllan, por sua vez, mantinha a perplexidade. O garoto parecia desafiar-lhe.
- Eu discordo do seu ponto de vista.
- Isso fica a seu critério – disse Damien, que sustentava o mesmo nível da conversa desde a primeira palavra.
- O que mais você concluiu? – Dyllan perdia a paciência, mas sem nervosismo.
– Partindo da primeira conclusão, ou do fato que você o ama, é que seu amor não se restringe à sua posição aqui nesta casa, e isso é muito óbvio. Sua afeição exagerada ultrapassa o profissionalismo sem ser escandaloso, o que é bonito. Você é muito transparente. O senhor Kopperden é muito mais do que o chefe de todos os bens neste terreno. Para você, ele não é o senhor G. Kopperden, ele é o Victor.
- Estou confuso... isso parece apenas uma questão de tratamento.
- Talvez seja, mas isso é levado a sério dentro do seu coração, não pode discordar disso. É um distanciamento que o torna fraco.
A conversa estava indo longe demais, quase sem sentido, ao menos para Dyllan.
- Eu... fraco?
- A fraqueza está na sua falta de confiança em si mesmo, na sua constante cobrança em ser bom, de servir bem. Isso afeta a você, e afeta ao Victor, mesmo sem você querer. Existe um espaço, grande, mas de fácil travessia, entre vocês dois.
A tempestade lá fora parecia não ter fim, e parecia que duraria até o nascer do sol do dia seguinte.
- Senhor Damien, já está muito tarde, e estou com um pouco de dor de cabeça. Aonde o senhor quer chegar, o que está querendo dizer a mim? Digo, como pode afirmar suas palavras, ter certeza de tudo que disse?
- Me responda você, Dyllan. Por que você não gaguejou em nenhum momento enquanto falei do seu sentimento?
Damien passou a mão no rosto de Dyllan e dirigiu-se à porta. Abriu-a, mas virou-se e falou, segurando a maçaneta:
- Isso prova que você também é forte. Pode ser, entretanto, que eu esteja errado.
- Sim? – atendeu Dyllan, que desligara completamente em meio aos seus pensamentos.
- Eu lhe respeito, lhe admiro, e lhe quero muito bem. E ainda assim, não posso dizer que amo você. Até amanhã.
A porta se fechou, e o mover do ar fez Victor tossir com força deitado de costas na cama, onde até então roncava baixinho. Dyllan foi até o lado dele, pegou na barra do lençol e cobriu Victor até abaixo do pescoço, pousando a mão esquerda em seu peito e sentando-se na beirada do colchão.
- Hum, Dyllan? – gemeu Victor com rouquidão.
- E-eu mesmo, Sr. Kopperden. – Dyllan levou sua outra mão até a testa um tanto úmida de Victor. Estava morna.
- Onde está o Philip?
- O Sr. Dungeon e os outros já foram dormir. É tarde. – A mão sobre a cabeça de Victor deslizou até seus cabelos embaraçados, umedecendo-os.
- Hum, e não parou de chover?
- Ainda não. Vai chover a madrugada inteira.
Victor limpou a garganta. Sua voz era serena como a de Dyllan, contudo um pouco mais grave.
- O que foi que eu fiz...
- Desculpe? – Dyllan não ouvira. Victor levantou sua mão direita e pegou na de Dyllan que estava sobre seu peito. Seus olhos azuis focalizaram o menino, o olhar lacrimoso.
- Eu fiz uma coisa muito ruim. Não devia ter feito, mas não pude me controlar. Eu perdi totalmente a razão, acho que tive um ataque...
- Não importa. Já passou agora.
- Quanto tempo eu dormi?
- Algumas horas, não muitas.
- Sei... – Victor ficou observando as mãos unidas sobre o lençol. A palma era macia para um serviçal tão trabalhador. Dyllan mantinha a outra mão sobre sua cabeça, no que parecia limpar sua fronte de suor. – Philip deve estar machucado, não?
- O Sr. Dungeon já tomou as devidas providências, senhor.
- Ele deve estar magoado... ressentido.
Dyllan não quis reprimir Victor falando sobre a fúria e indignação de Philip.
- Já conversei com ele, ele vai permanecer aqui.
- Ele pensou em ir embora?! – Victor arregalou os olhos, gemendo mais alto e tossindo em seguida. Os trovões eram constantes. Dyllan arrependeu-se das suas palavras.
- Não – mentiu -, o Sr. Dungeon ainda q-quer ficar aqui. Ele gosta do senhor, não tenha dúvidas.
- Você acha, Dyllan?
- É claro, Sr. Kopperden. É fácil gostar do senhor. – Victor fechou de leve os seus olhos e deu um sorriso faceiro com os lábios, apertando mais forte na mão de Dyllan.
- Não, não deve ser, meu querido. Têm vezes que eu mesmo sinto repugna a mim.
- Imagine, Sr. Kopperden.
- É verdade, Dyllan. Falo sinceramente. As coisas que venho fazendo...
- Você não fez nada de errado. S-senhor.
- Ontem pela manhã, quando você me acordou, eu fiz uma promessa. Quer dizer, não foi uma promessa concreta, foi algo que senti. Algo que precisava mudar, e eu estava disposto a mudar. – Seu polegar acariciava de leve os dedos finos de Dyllan. – Naquela hora, depois de lembrar do que acontecera na noite anterior, durante e depois da festa, e do que vinha acontecendo em todas as outras noites nos últimos meses, eu senti uma grande vontade de seguir sendo diferente.
Dyllan passou alguns fios loiros de Victor por trás de sua orelha e uniu sua mão nas outras entrelaçadas. Victor ainda precisava de repouso, e ele também, pois continuava com um leve mal estar na cabeça. Victor riu baixinho.
- Oh, meu pequeno Dyllan... Meu Dylly. Você não deve estar entendendo nada do que digo. Talvez seja melhor assim, fora dos meus problemas.
- Não diga isso, Victor. Seus problemas são mais importantes que os meus. Eu me preocupo, sim.
- O que fere meu coração, Dyllan, é saber que não consigo cumprir minhas promessas, por mais singelas que elas sejam. Não prometi em palavras, mas sabia o que faria dali em diante, ou o que pretendia fazer. Mas não consigo me respeitar, nem aos rapazes.
- Eles são garotos da noite, não há nada que você possa fazer ou dizer que vá ofendê-los. F-francamente. – Pensou em relatar uma rotina hipotética dos garotos, enfatizando a quantidade de relações que pudessem ter por dia. Preferiu o silêncio secreto da mente, ao pensar nos costumes cotidianos do seu patrão.
- Dyllan, você ainda insiste nessa perseguição? Eles não são maus rapazes, e eu pedi a Gustav que escolhesse muito bem quem traria para minha casa.
- Perdão. Só tenho zelo pelo senhor.
- Eu sei, Dyllan, me perdoe. – Levou a mão de Dyllan até os lábios e beijou-a afetuosamente. O menino pôde sentir o hálito quente soprar sua pele. – Me dê mais uma chance de tentar ser feliz. Eu preciso.
- Certamente, senhor. O que o senhor precisa agora, porém, é de uma boa noite de sono. Ainda está fraco. Vou lhe trazer um leite morno e volto logo.
Dyllan preparou-se para se levantar, mas Victor manteve sua mão presa ao peito.
- Dyllan? – Seu olhar escondia súplica.
- Sim?
- Se importa de me abraçar?
Um leve tremor atingiu a bochecha de Dyllan, que enrubeceu na escuridão do quarto. Sem nada dizer, Victor ergueu-se em prontidão e pousou a cabeça sob o queixo de Dyllan, apertando o rosto no peito do garoto. Dyllan, parcialmente constrangido, viu como única alternativa postar seus braços nas costas de Victor. Ao fazê-lo, sentiu a pele molhada e marcada pelo lençol. Apertou lentamente, enquanto Victor choramingava no maior silêncio que poderia fazer, não evitando constantes soluços. O perfume dos cabelos de Victor preencheu o interior de Dyllan enquanto esse inspirava profundamente, em uma atitude engraçada mas não humorística, um homem muito maior e mais forte que ele consolando-se no seu abraço. Podia sentir as costelas suadas por baixo dos músculos de Victor, e manteve o abraço até ele interromper as lágrimas e encostar-se no travesseiro novamente.
- Eu volto já – falou Dyllan, dirigindo-se de costas à porta, enquanto Victor perdia seu olhar melancólico no teto sombrio.
Em um instante estava de volta, uma grande xícara de porcelana com leite morno e mel em uma das mãos. Descera e subira as escadas sem pensar em nada do que ocorrera durante o dia. Não havia assimilação razoável. A dor de cabeça passara, mas cansava-se só de imaginar as palavras subentendidas que trocara com Damien, e há pouco com seu patrão.
Entrou no quarto, e deparou-se com Victor dormindo de costas viradas em sua direção, do outro lado da cama. Largou a xícara no criado-mudo e foi até a lateral da cama, tapando Victor até os ombros novamente. Dormia tranqüilo, os lábios e os olhos umedecidos.
Dyllan respirou profundamente, tão profundo que engasgou-se com o próprio ar, e, temendo despertar Victor, saiu, com o rosto rubro e a passos leves, do grande quarto daquele solitário homem que queria tanto bem.



*****


terça-feira, 9 de setembro de 2008

Capítulo 9 - A respeitável Senhora Hick




Os olhos claros de Yan iam marejando à medida que suas faces adquiriam tom ruborizado. O tom das paredes era bege, tão claras que se diriam brancas.
- Escutando atrás da porta?! – falou a mulher altíssima à frente dele. Magra ao ponto de seus cotovelos serem pontudos e suas bochechas sugadas para dentro do rosto, a mãe de Yan parecia querer explodir. Tremia furiosamente, sua pele molhada de suor cheirando a cigarros, os cabelos negros e enrolados presos por uma fita preta mal amarrada no topo da cabeça.
Yan era apenas um menino, uma criança nos primeiros anos da escola. Ainda que um infante, o pequeno Yan era promissor quanto à beleza e a graça. Quando seu rosto moldava-se num seu raro sorriso seu, ninguém poderia manter qualquer nível de seriedade ao ver os dentinhos brancos e formosos. Se chorava – e costumava chorar sozinho jogado sobre as paredes -, as almas mais sensíveis sentiriam os anjos chorarem junto dele. Yan já era alto para sua idade, tão magricelo que se viam suas costelas, as coxinhas redondas por debaixo das calças de moletom. Pequenas mechas negras caiam sobre os olhos tristes, os olhos mais tristes do mundo.
- Me responde, menino! Estava ouvindo atrás da porta? O que foi que você ouviu? Me fala!
O uniforme branco e azul ficava largo no seu corpinho mirrado, a camisa branca parecendo um longo vestido, o que de certo modo era bom já que suas calças escorregavam seguidamente da cintura. Ele se segurava para não chorar de medo. Desviando do rosto da mãe, arriscou olhar o que havia no quarto atrás dela. Uma outra mulher, mais rechonchuda que sua mãe, estava deitada no centro da cama em meio ao breu do lugar, com o aspecto cansado e sufocante, como se estivesse passando mal. Assim que a gorducha retribuiu o olhar macilento em sua direção, seu contato ocular foi interrompido por uma forte pancada no rosto que o derrubou no chão. O susto foi tamanho que o choro não saiu, prendeu-se acima do estômago esmagando o coração. Apenas a boquinha contorceu-se num grito mudo e desesperado.
A porta fechou com estrondo. Sua mãe posicionou-se sobre ele, as pernas mal depiladas abertas, equilibradas nos pés descascados e de unhas retorcidas. O lado direito do rostinho de Yan ardia em brasa, disputando calorosamente com a dor acima do olho esquerdo, que batera com violência no chão encarpetado. Doía muito, dor misturada na sensação de revolta e agonia. A mãe de Yan apontou-lhe o dedo fino e enrugado, quase tocando seu nariz, furiosa.
- Isso é pra aprender a não ser bisbilhoteiro e meter a fuça onde não deve, sua peste!
Na primeira oportunidade que teve para respirar, o menino Yan berrou alto, tão alto, com toda a força que tinha nos seus pequenos pulmões, horrorizado, assustado, apavorado. Era pior, mil vezes pior, do que assistir sozinho aos filmes de príncipes encantados e bruxas malvadas.
- Sai já da minha frente, moleque cretino!
Arrastando-se como um paralítico das pernas, o menino gritava estrondosamente em prantos, e engatinhou ligeiro até conseguir erguer-se, os pés descalços, correndo para o seu quarto no fim do corredor. Tinha impressão de que sua mãe atiraria alguma coisa em sua direção. O quarto nunca demorara tanto a se aproximar, e o pânico cresceu dentro dele. Seus grandes e cintilantes olhos azuis eram nascentes de um novo rio, rio que em breve Yan se afogaria, amedrontado e indefeso.
Chegando finalmente ao quartinho pequeno, Yan bateu a porta atrás de si e continuou a solitária lástima angustiante, empapando a camiseta de lágrimas. Yan tocava seu próprio rostinho de ambos os lados, sentindo as pulsações da pele nas áreas machucadas. Do lado de fora da porta ele escutou o que parecia ser uma discussão entre duas ou mais pessoas, mas nenhuma palavra soava clara para a criança. Aquele choro que clamava por piedade perdurou por quase duas horas, até terminarem-se as lágrimas e restar apenas o esgotamento de sua energia. E a dor.
A dor, enfim, diminuíra bastante quando a noite chegara, mas o latejamento acima do olho esquerdo persistia cruelmente. O menino Yan não compreendia o que o fato de ter ouvido atrás da porta tinha de punível, e nada do que pensasse justificava a reação da sua mãe, antigamente tão amada por ele. O que será que acontecera com a mulher doente? Ela deveria estar muito mal para sua mãe ficar tão embravecida. “Elas poderiam ter brigado”, pensou. Yan seguiu refletindo longamente, mas o medo e o apavoramento impediam o seu raciocínio.
Encolhido sob a porta, Yan sentiu frio e pulou para cima da caminha, cobrindo-se dos pés à cabeça, não sem antes tirar todo o uniforme escolar do corpo: frio ou calor, não gostava de nada o apertando durante o sono. O cansaço o venceu rapidamente, e dormiu o que pareceu ser duas noites em uma. Em determinada hora que não soube dizer qual, Yan escutou sua porta abrir, a luz tímida iluminando seus brinquedos e livros. “É o pai, é o pai...”, torcia ele. Um arrepio percorreu-lhe a espinha à medida que os passos se aproximavam, o temor crescente da hipótese de apanhar outra vez da mãe encarnada.
A coberta foi puxada, destapando sua cabeça, e Yan fingiu estar dormindo, respirando profundamente. Sentiu um leve beijo perto do nariz, onde antes ardia pelo tapa recebido. Os passos se afastaram, e ao estranhar o cheiro que ficara, espiou a sombra no breu do quarto.
Sua mãe arrastava os chinelos e fechava a porta.
Antes de Dyllan falar alguma coisa, Yan, no presente, segurou-lhe pelos ombros tentando acalmá-lo. As paredes deste corredor eram envernizadas e escuras, lembrando uma catedral arrojada, e passavam a impressão de vibrarem a cada trovoada.
- Dyllan, acalme-se! Eu posso explicar.
Dyllan tremeu sobre os pés, reagindo ao movimento inesperado de Yan, que o segurava firme. Ao que Yan percebeu o constrangimento, largou-o e desceu as mãos.
- Sr. Hick, o que fazia atrás da porta?
- Eu não estava escutando atrás da porta... quer dizer, eu estava passando e...
- O que o senhor ouviu, Sr. Hick? – insistia Dyllan, mantendo um respeito digno para com o convidado do seu patrão, que ainda dormia a três quartos de distância.
- Bem, eu confesso que ouvi tudo. Acho que tudo. Se você começou falando dos problemas do chefe, eu ouvi a conversa toda.
Dyllan tomou uma expressão que ao olhar cuidadoso de outrem era inexpressivo. O mordomo dos Kopperden desligara completamente, nem parecia respirar. Yan tentava interpretar a careta sem graça do rapaz. Buscou ajuda nas feições de Philip, estacado no quarto azul, que deu de ombros e caminhou até o banheiro privado.
- Desculpa. Dyllan.
O rapaz continuava mudo. Os olhos tremeram ligeiramente. Yan replicou:
- Vamos para a sala, eu preciso falar com você.
Como Dyllan mantinha-se estático, Yan puxou-o pela mão e levou-o até a sala principal decorada com as cortinas verdes; um imenso quadro de Victor adolescente sobre a porta de entrada, ricamente emoldurado, encarando a todos em cada metro quadrado que se pudesse estar. Na lareira, o fogo constante esquentava o salão. Os sopros do vento do lado de fora das paredes eram agudos, os trovões cada vez mais seguidos. Ulysses encontrava-se no mesmo sofá em que sentara no dia da chegada à mansão, nesta noite acolchoado com grossas e macias cobertas rosadas. O rapaz mantinha seu chapéu amarelo de costuras de variados tons de marrom, e na ponta do nariz fino pairava um óculos de claras lentes. Com os pés sobre o encosto lia um livro espetacularmente grande, com figuras indefiníveis e de título ilegível à distância. Ao ver Yan e Dyllan descerem as escadas, fechou o que estava lendo e colocou cuidadosamente sobre a mesinha central.
- Ulysses – disse Yan -, precisamos conversar.
- Eu e você? – falou Ulysses, voz embargada pela quietude em que permanecera folheando o livro.
- Não, eu e o Dyllan.
Dyllan não compreendeu.
- Conversar o que?
- Eu preciso lhe contar o que eu sei – disse Yan bastante convicto.
Ulysses assistia à cena como se fosse um teatro visto na metade de um ato importante.
- Tudo bem por mim – choramingou ele, levantando-se. – Estarei na cozinha se precisarem de mim – e saiu da sala a passos largos.
Yan puxou Dyllan pela mão e o fez sentar no mesmo sofá acolchoado onde estivera Ulysses, e sentou-se junto ao mordomo. O caso era sério, e não poderia ser discutido de outra forma senão frente a frente, olhos nos olhos. O que ainda era incerto, contudo, na opinião de Yan, era se Dyllan colaboraria numa conversa sincera, sem rodeios e principalmente, que chegasse a uma conclusão.
- Dyllan, posso começar? Você não parece bem, o que foi?
- Ah, f-fale… Sr. Hick – respondeu Dyllan, evasivo como nunca se mostrara a Yan. Durou ainda alguns segundos, mas como uma máquina que acabara de destravar, Dyllan fixou sua atenção ao homem de feições infantis, pescoço largo e braços semelhantes a grossos pilares.
- Como eu disse antes, Dyllan – prosseguiu Yan, agora conformado com a suposta concentração do mordomo -, tenho uma hipótese para as atitudes do chefe...
- Sr. Kopperden – Dyllan interpôs.
- ...e quero apenas que me confirme, ou fale de uma vez por todas o que está se passando aqui. Estou cansado de agir feito um idiota, um ignorante, um desavisado. Afinal, já recebi todo o dinheiro que poderia ganhar. Mesmo com toda a diversão que tenho aqui nessa mansão, e confesso que me divirto muito, eu preciso saber se vale a pena brigar por um homem de postura duvidosa como o chefe.
Dyllan, apesar da concentração, levou um instante para processar o discurso de Yan, e do que dizer ao visitante de perguntas inoportunas.
- O que você pensa ser o problema do Sr. Kopperden?
- Ele é um tarado! – disse outra voz.
Do topo da escada, ainda vestindo o roupão semi-aberto no peitoral, Philip mostrava-se interessado no diálogo.
- No mínimo, um surto que dá de vez em quando – prosseguiu, descendo de dois em dois degraus de pés descalços. Yan aparentava impaciência quando a luz do fogo refletiu no infinito azul de seus olhos, tanto ou mais impaciência do que Dyllan com suas grossas sobrancelhas negras e as características covinhas na testa escondida sobre pequenas mechas escuras do seu cabelo molhado.
- Ah, qual é, parceiros? – esnobou Philip, atirando-se no sofá em frente igualmente coberto por uma colcha rosada, exibindo não somente o peito bem trabalhado mas também as grossas coxas de pêlos loiros. – O primeiro a ouvir qualquer fofoca fui eu. Não estou a fim de ficar só com a metade da historinha infeliz do pequeno canibal.
- Sr. Dungeon! – repreendeu Dyllan.
Yan não simpatizou com a idéia de mais um envolvido naquela confissão que pretendia fazer, sendo tão particular quanto as ondas dos seus cabelos pretos que iam e vinham pelos seus ombros, mas não tão indiscreta quanto eles.
- Enfim – continuou, não encontrando outra saída para a presença descabida de Philip -, eu não acho que seja loucura. É um tipo único de transtorno.
- Ah, fala sério... – caçoou Philip, dando um tapa na própria perna desnuda. – Por acaso ele tem "TIC"?
- É TOC – corrigiu Yan -, e não é esse tipo de transtorno.
- Bonitão, eu conheço o tipo.
- Do que você está falando?
- Isso é doença.
Em frações de segundo, uma parte de sua vida, senão toda ela – que seja uma considerável, uma das de maior importância – percorreu as memórias de Yan.
Yan passara a infância escondido pelos cantos de qualquer lugar temendo o próprio medo. Medo das coisas que eram maiores que ele, do que era pesado, do que não quebrava, do que explodia. Medo da luz, medo do fogo, da água, da chuva, da água da chuva, medo da coberta cair durante a noite e congelar.
Medo das pessoas ele jamais teve. Seu nível cultural sempre fora mais avançado que seus colegas de turma, e o mundo que conhecia nos filmes dos adultos, nem naqueles do tão nobremente admirado Ian McKellen, nunca chegara a causar-lhe aflição. Se algo o incomodava, ele dava crédito às pessoas, pois as pessoas eram construtoras das coisas, controladoras das próprias criações, e nenhuma pessoa pensaria, na consciência do bem, em agir de má índole para com o próximo, ao menos não de propósito. O mal nunca é feito de propósito, pois a intenção, por pior que pareça, sempre argumenta com o bom, na boca de todos os agentes. Ele não acreditava na maldade, como um fator comportamental dos seres humanos. Afinal ele sabia, conhecendo a mãe que tinha e que enchia a boca para falar, que “o que parece ruim é na verdade bom demais”.
À medida que crescia – o que a genética contribuiu para ser um processo mais rápido e avantajado que o normal – o garoto Yan conhecia uma nova parte do grande quebra-cabeça ambulante que era sua mãe, a respeitável Sra. Hick.
À mínima possibilidade de atrevimento à mãe, Yan sentia cada membro de seu corpo afugentar-se mais para dentro. O garoto que era uma criança completamente indefesa e tomada de dúvidas crescera, já tinha seus felizes e belos quinze anos, adquirira porte, firmeza no corpo, as calças não caíam mais, seus pensamentos se tornaram maiores. Porém as dúvidas persistiam, e cada vez mais sua mãe era uma incógnita.
Diversas eram as discussões entre a Sra. e o Sr. Hick, nem sempre envolvendo Yan. O garoto, de cabelos um tanto oleosos e crescidos, freqüentemente presenciava os conflitos, mas nunca dissera uma palavra. Por parte do pai, Yan reconhecia as dificuldades em conviver com uma pessoa de personalidade tão conturbada e variável como a mãe; da parte dela, talvez a única mágoa fosse a passividade com que seu pai agia, possivelmente pela falta de “punho forte” na criação do filho único.
E foi do pai que Yan herdara o comportamento imparcial, não tomando partido de briga nenhuma, até porque ele mesmo nunca brigara diretamente com ninguém. Como é da base que se chega ao topo, como a lava vem de dentro da Terra e esguicha da ponta do vulcão, houve um dia em que Yan resolveu prestar mais atenção nos pais e em cada argumento que diziam. Era uma noite de segunda-feira, e na TV passava uma notícia sobre uma famosa menina desaparecida há mais de um mês na cidade vizinha a sua. Yan tomava um leite morno antes de se deitar, escorado na pia da cozinha. O pai de Yan, um senhor de idade que já tivera seus dias de virtude, de óculos amarelados, curvado e rouco, tinha a voz ainda mais escapada do que de costume em meio a discussões.
- O que aquela mulher estava fazendo lá em cima, Alicia?
Sua mãe demorava em responder às perguntas que não tinham resposta, ou que definitivamente não estava disposta a dar explicações.
- O que eu faço com elas, seu idiota?
- Eu não sei, Alicia. Nunca estive presente nessas horas. E não foi a primeira nem a segunda vez que eu vejo uma mulher maltrapilha sair daqui.
- Você que não presta atenção! – esbravejava ela, ajeitando confusamente a disposição de algumas panelas na parede da cozinha de ladrilhos amarelos, decorados com frutinhas coloridas em pequenos cestos. Por vezes suas mãos se agitavam, dando a impressão de que o objeto escaparia da mão dela.
- Quem era aquela mulher, Alicia? Me responde, por favor, não agüento mais esse sofrimento.
- Ah, mas como você sofre, John! Por que não procura motivos para sofrer de verdade, como se colocar no meu lugar, por exemplo! Ver as coisas como eu vejo, sentir o que eu sinto toda a vez que tenho que deitar na mesma cama que você, suportar a sua respiração toda maldita noite!
O pai de Yan guardava a cabeça baixa. A menina desaparecida na TV era filha de uma atriz de cinema. Yan notou que ela nunca contracenara com Ian McKellen em qualquer filme que tenha visto dele. John aparentava cansaço.
- Isso não é bom, Alicia, não faz bem.
- Se não é bom para você, é bom para mim.
Silêncio, só a TV e risadas do vizinho.
- Alicia, você não me respondeu o que aquela mulher veio fazer aqui.
- É uma das sessões, seu desmemoriado – respondeu grosseiramente a esposa.
- E o que você faz nessas sessões?
- Ora, ora! – disse ela, gingando no lugar em que estava como num passo de dança esquisito. Yan não prestava mais atenção na notícia da TV. O leite estava quase no fim. – Agora o senhor está interessado no que eu faço?
- Só responda...
- Não vou responder nada! Já chega dos seus interrogatórios!
- Alicia, estou tão cansado disso...
- Você está cansado!? – gritou ela, levantando a panela de alumínio que tinha nas mãos na direção do marido. – Pois eu estou exausta, esgotada até a alma dessa palhaçada! Eu não tenho que dar satisfações para você! Quando é que eu te pergunto alguma coisa?
John emudecera. Algumas lágrimas rolaram por debaixo dos óculos remendados. Yan queria sumir, ao menos poder desaparecer como a filha daquela atriz de cinema.
- Ela é uma amiga, uma cliente minha! E chega, já chega de me explicar para você!
Yan bebeu o último gole do leite que esfriara. Virou-se para a pia e ligou a torneira. Enquanto a água gelada lavava a xícara, John disse o que Yan jamais esquecera, o que mudara talvez não somente a noção de quem sua mãe era como também de todas as pessoas que conhecia, e de quão grave isso poderia ser para eles, para sua mãe, para o seu pai, e para ele mesmo.
- Alicia...
- O que é?!!
- I-isso é doença.
Yan desligou a torneira, colocou a xícara no escorredor de louça e preparou-se para subir ao quarto. Sua mãe permanecia no mesmo lugar estarrecida, com a mesma panela na mão. Mesmo assustada e com aparência indefensável, sua mãe nunca esteve com aqueles olhos, os olhos mais furiosos do mundo.
Sem saber direito o que fazer, e transtornado o suficiente para permanecer em meio ao fogo cruzado, Yan dirigiu-se às escadas. Seu braço, entretanto, foi agarrado pela mão fria e ossuda de sua mãe.
- Você fica aqui, garoto, pra ver o estrago que vou fazer com esse infeliz!
Dessa vez foi Yan que segurou seu braço, onde Alicia segurava a panela.
- Mãe, não bate nele. Ninguém vai bater em ninguém.
- Me larga, moleque cretino! – espraguejava ela, sacudindo-se violentamente.
Yan não disse mais nada. Bastou um puxão para que pudesse arrancar a panela das mãos da mãe e colocar de volta na parede.
- Você não entende, Yan! Não entende!
- Isso é doença... – repetia o pai, chorando e de cabeça baixa.
- Doente é você, seu salafrário!
- Eu vou subir – dissera Yan pulando os degraus que o levariam para cima, ao que sua mãe redargüiu:
- Você não é diferente de mim, Yan! Não é.
Rapidamente chegou ao quarto, não muito diferente do que era há alguns anos a não ser pela menor quantidade de brinquedos e objetos coloridos. O quarto era azul, um azul que só perdia em profundidade com seus olhos que, levemente marejados, brilhavam tristes na fina luz da lua que assaltava pela janela por entre as brechas da persiana.

Yan retirou a camiseta comprida e atirou-a na cama. Alisando os cabelos e esfregando as mãos nos braços, Yan não atingia nenhum estado de compreensão. Sua mãe continuava um ponto de interrogação, inexplicável. Era um tumulto tão grande em sua cabeça que nada mais poderia se esclarecer, e pensou que a única rota de fuga era o sono, o sono e o sonho, qualquer sonho, um sonho bom, longo e quente.
Lá embaixo a discussão parecera terminar. Yan ouviu um barulho de porta se fechando, estrondosamente, fazendo vibrarem os vidros da pequena janela, divididos em cruz, na frente das persianas. Sem bater ou anunciar a entrada, o pai de Yan surgiu de súbito, inconveniente para a vontade de Yan de cair na cama e apagar em menos de um minuto.
Próximo à janela, a luz da lua entrecortada refletindo no seu tronco desnudo, Yan decifrava as expressões conflituosas do pai que lento e aparentemente manco se aproximava, sem levantar a cabeça um instante sequer. Parou, enfim, a um passo de distância. Yan virou-se por completo para ele, esperando qualquer coisa, um sinal, uma fala, uma reação, um tapa que fosse, mesmo que isso não corroborasse com o perfil do pai.
A mão de John Hick subiu e apoiou-se no ombro iluminado de Yan pela luz da lua. Um soluço preencheu o silêncio do lugar. O Sr. Hick segurava-se para não chorar, agonizante. A mão desceu de leve, até segurar o peito esquerdo do filho alto e esbelto, agora estático. Outro soluço, seguido de mais um. Um leve aperto no peito macio, e depois outro. John Hick forçou-se a encarar o filho. Pai e filho, ambos atônitos, um na insegurança, outro na dúvida; um no remorso, outro no receio; um na vergonha, o outro também. John Hick subia e descia a vista no corpo saudável do filho, duas, três lágrimas lavando sua cara envelhecida que balançava lenta e negativamente, os óculos embaçados, a boca torcida sem expressar uma sílaba. A mão desceu mais, escorregou nas dobras do abdome, resvalou pro lado, apertou a cintura. John Hick chorava, e o filho também.
Em um surto desesperado, John Hick saiu apressado do quarto, em prantos que agora preenchiam a casa inteira. A porta se fechou, e Yan pensou, pensou, e pensou em não querer pensar, e então não pensou em nada. Deitou, e dormiu. Não sem antes tirar a roupa toda, e chorar um pouco mais.
- Isso é doença, não pode ser outra coisa – seguiu Philip, balançando a mão, insistente na idéia.
- Não – prosseguiu Yan, como se não tivesse revivido em instantes aqueles momentos dramáticos -, é um transtorno.
- E transtorno não é doença? Poxa, o cara não é normal. Uma hora ele tá bem, na outra ele tá babando por qualquer um de nós. Já viu as perguntas que ele faz? “Como vocês gostam de se divertir, senhores?”, ou “vocês todos começaram cedo como o Damien aqui?” ou “algum de vocês quer casar comigo?”, ah, qual é! Quem, em plena sanidade, tem como objetivo casar com um garoto de programa? Ele não tem nojo, não tem medo? Não tem vergonha na cara?
Dyllan saia devagar do pequeno transe que insistia em permanecer, e que persistira por longos minutos, mortificado pelos fatos terem fugido do seu controle. Controlar Victor estava difícil com outras quatro companhias para se preocupar. Resolveu, por fim, entrar na conversa.
- O que falta no Sr. Kopperden, talvez, seja bom senso. Eu... – “Eu já disse isso para ele”, pensou consigo.
Philip riu forçadamente, como se achasse o comentário o mais engraçado da semana.
- O que falta pra ele é uma foda bem feita, guri! – retalhou ele, indiferente à vermelhidão do rosto do mordomo. – O cara se veste bem, tem dinheiro caindo do bolso, mas a cabeça tá fora da órbita!
- Ele é bipolar – disse Yan entre dentes.
- O que? – disseram Dyllan e Philip.
- O Victor é bipolar.
- E isso não é doença? – interrogou Philip.
- Não, não é! – esbravejou Yan, visivelmente furioso, levantando de súbito. Philip contraiu-se de leve no sofá, mas ao ver o homenzarrão se dirigir à lareira preocupou-se em ajustar o roupão ao peito.
- E... como você sabe? – perguntou, solene.
Yan remexia as brasas da lareira com o atiçador enegrecido. Os feixes do fogo reluziam nos seus olhos melancólicos. Media as palavras.
- Saber eu ainda não sei, mas desconfio fortemente. Espero que você confirme, Dyllan.
- Baseado em quê? – seguiu Philip.
- A minha... eu conheci uma pessoa, e ela tinha um comportamento parecido.
- Uma viciada em sexo?
- Não! – berrou Yan. – Não. – disse, baixando a voz. – A... ela era calma na maior parte do tempo, regulada até. Tinha dias em que ela era a pessoa mais doce do mundo, tinha tato comigo, com meu pai... lia diversos livros, até de auto-ajuda. Fazia projetos, comprava presentes, ia correr na rua. Era professora de matemática. Sei que por uma palavra mal interpretada ela mudava radicalmente... Uns olhos furiosos, um fogo tão forte, tão desesperador que eu tinha medo, que queria fugir, mas não podia. Tinha que ajudá-la.
- Quem era essa mulher?
- Eu até tentei ajudar – prosseguiu Yan, ignorando a pergunta do rapaz de roupão apertado -, e tentei muito, dando tudo de mim, as energias todas que tinha comigo, até a energia que buscava dos outros... – “...dos outros que eu nunca tive medo antes”, pensou sozinho.
Dyllan ajeitou a postura no sofá, esticando as costas e alisando as ombreiras do uniforme.
- Sr. Hick, eu ouvi s-seu discurso, mas...
- Eu tentei ajudar, e não consegui – cortou Yan, passando o atiçador por cima das labaredas da lareira. - Mas não foi culpa minha.
Dyllan prosseguiu:
- Sr. Hick, t-tudo que o senhor disse não encaixa no comportamento do Sr. Kopperden. É uma observação p-prematura e ingênua.
- Ele não deixa de estar certo – concordou Philip -, mas na hora que você falou do comportamento que mudava de uma hora pra outra, isso é verdade. O teu chefe fez uma dessas lá na caverna, por isso que deu essa merda – e apontou bruscamente para onde escondia-se o membro ferido. - A gente tava molhado, eu tirei a roupa, pra secar numa fogueira que a gente fez lá, eu tava com frio, mas o loirinho tava mais, aí eu abracei ele. Do nada ele disse “foda-se” – Dyllan baixou os olhos para os pés da mesinha de centro onde o livro de Ulysses, “Manual de Monitoramento”, se encontrava – e baixou minha cueca!
- Isso é verdade?! – espantou-se Dyllan. Até Yan virou-se para averiguar a realidade dos fatos nos traços de Philip.
- To falando! Ele baixou minha cueca, e pra ser sincero o cara chupa bem pra caramba – Dyllan levantou-se e virou de costas para Philip, que falava em meio a conturbadores sorrisos da experiência fatídica na caverna -, nossa mãe! Tava tudo muito bom, eu fiquei até com calor, com vontade até de fazer outras coisas, até porque nunca tinha feito nada em caverna nenhuma, não nesse tipo de caverna – e riu do gracejo infortúnio. – Mas na hora que eu tava pra gozar o cara não pega e me morde? Cara, que dor do caralho! Mistura das mais loucas, cara, muito prazer e muita dor, tudo junto! Mas não pensa que foi bom porque não foi, não gosto dessas coisas sado.
- Maso – corrigiu Yan.
- Não foi o que eu falei?
Ulysses, vindo da cozinha, usando os óculos que destoavam do seu traje casual, caminhou sonoramente até o centro da sala.
- Esqueci meu livro – disse. – Já vou subir, boa noite.
- Uma ótima noite, Sr. Loyola – desejou Dyllan, olhar fixo num dos vasos chineses. O vaso da terra. Balançou rapidamente a cabeça, enquanto voltava-se novamente para os dois rapazes na sala.
- O senhor quer dizer que esse comportamento inesperado do Sr. Kopperden tem a ver com o tipo de postura da mulher de que o Sr. Hick nos contou?
- Claro que sim! O cara tá bem, aí fica mal, aí fica com tesão, aí me morde! Ele se comporta sempre com... como é que é...
- Inconstância – completou Yan. – Comportamento volúvel. Sempre mudando de um nível para o outro. Subindo e descendo, entre dois pólos.
- Ah – gemeu Philip, esticando a expressão, pensativo -, bi-polar.
Yan mantinha infinitos argumentos para serem ditos ainda, mas um cansaço repentino tomou conta de todo seu corpo, pesando mais na sua cabeça. Passou a mão que antes segurava o atiçador pelos cabelos, num movimento que vinha da testa e terminava afagando as mechinhas que insistiam em virar para fora, como em cachinhos. Nada mais tinha a declarar naquela noite. Não importava se Dyllan confirmasse sua teoria ou não. Queria de novo cair na cama, depois de tirar a roupa toda, cair e sonhar, coisas boas e quentes. No caminho do quarto passaria pela cozinha e pegaria um leite morno. Ou podia dizer à Dyllan, ou pedir mais tarde pelo interfone privado do quarto. Se deixasse pra depois, contudo, talvez esquecesse do leite morno e dormisse com a garganta seca e o estômago vazio.
No andar de cima, uma porta se abriu ao longe, rangendo de leve. Em poucos passos apressados, Damien chegou à balaustrada, olhinhos fundos e com um pano úmido e aquecido nas mãos.
- Ele acordou – disse baixinho lá de cima, com sua voz límpida.
Dyllan apressou-se pelas escadas, ultrapassando Ulysses e seguido por ele. Philip lutava contra a vontade de permanecer recostado no sofá coberto com a colcha rosada; por fim, subiu. Yan encarou Damien, que insistia em observá-lo profundamente dentro dos seus olhos, como uma criança ao ver algo estranho ou novo. Yan estava feliz, mais por Victor e menos por ele mesmo, em seu altruísmo sempre presente. Felicidade, e só isso. Afinal, tinha uma chance naquela casa de fazer algo por alguém que de certo modo também lhe dava medo. Todos lhe davam medo, com seus comportamentos inesperados, de fúria ou de libido à flor da pele, sendo doentes ou não, mas a coragem surgia no fundo do seu coração. Talvez uma xícara de leite morno contribuísse para encorajá-lo. Ele poderia ajudar dessa vez, ao menos tentar usando tudo que sabia.
Lá de cima, Damien sorriu, chamando-o num gesto com a cabeça. Yan estava relaxado, leve. Virou-se e focalizou o espião constante pintado e eternizado nos traços perfeitos do quadro sobre a porta; Victor era belo desde jovem, os fios dourados dos cabelos e a boquinha cor de rosa. A intranqüilidade fugira dele, queimou na lareira junto às suas mágoas. Os olhos azuis e intensos vibravam, alagados de alegria.
Os olhos tristes, os olhos mais tristes do mundo, sorriam.






*****

sábado, 6 de setembro de 2008

Próxima postagem... (dia 09/09/2008)


O estarrecimento tomou conta de Dyllan ao ver Yan Hick parado diante da porta. Ouvira ele alguma coisa comprometedora sobre Victor Kopperden? Será que ele tem algo para falar sobre isso? Mais do que se imagina.

Descubra no "Capítulo 9 - A respeitável Senhora Hick".

sábado, 30 de agosto de 2008

Capítulo 8 - A gaveta suja




Logo que Dyllan retirou-se do quarto, Damien permaneceu observando Victor por alguns instantes, como se tentasse compreendê-lo por completo através da sua respiração. Quando a toalha branca pareceu esfriar, Damien retirou-a da testa do enfermo e fez como Dyllan dissera, colocando-a na vasilha ao lado da cama e molhando-a na água quente da chaleira. Com um cuidado fraternal, repôs a toalha sobre a fronte molhada de Victor, continuando a compressa. Ao que tudo indicava, Victor continuaria adormecido por um tempo considerável, o que deu a Damien privacidade para perambular pelo ambiente.
O dormitório do Sr. Kopperden era visivelmente maior que o de Damien. O teto negro dava a impressão de profundidade, sua altura indefinida. Numa rápida observação, Damien forçou-se a concluir que, apesar de tanta riqueza aparente, a mansão, no geral, era simples, nada de muito extravagante. Os móveis não pesavam no visual, tampouco contrastavam com a arquitetura rústica e moderna ao mesmo tempo, num exotismo nunca visto antes por aquele garoto.
Ao contrário do quarto onde se hospedava, o dormitório de Victor abrangia mais espaço, o que permitia maior disponibilidade de móveis. Apesar disso, nada de muito excêntrico se era possível encontrar, deixando grandes espaços vazios. Pela mente de Damien, era um reflexo da solidão eminente daquele homem. Suas conclusões sobre Victor Kopperden eram poucas e vagas, quase nunca concretas, com brechas para tantas interpretações que o faziam calar e parar para pensar com calma. Quando pensar cansava, fechava os olhos, se retirava, dormia um pouco, lia algum livro grosso ou fazia algum exercício. Eram poucos dias de convivência, de fato, mas dadas as circunstâncias, cada minuto de ingenuidade parecia perdido para Damien.
Já de pé, o garoto caminhou até o guarda-roupa claro, abrindo as duas portas centrais. Localizado próximo à saída para o corredor, o móvel abrigava peças excepcionalmente belas, que certamente custariam o preço de banquetes. Damien retirou algumas peças para observá-las, e não encontrou nenhuma etiqueta que indicasse marcas ou grifes, o que o fez pensar em roupas exclusivas, feitas sob medida, exemplares únicos e estilizados. Recolocando as peças no lugar, constatou, num segundo vislumbre, que o guarda-roupa adentrava a parede, onde outras tantas peças admiráveis se penduravam em hastes de correr. Fechou as portas com um leve estrondo, voltando-se para ver se Victor teria despertado. Como o dono do quarto permanecia de olhos cerrados, Damien seguiu em direção a uma pequena escrivaninha, ao lado do toalete róseo.
Afastando uma cadeira giratória de tecido escuro, Damien ia abrindo as gavetas laterais uma por uma. Na primeira delas, uma quantidade infinita de papéis e documentos a entulhavam, apresentando recortes de jornais antigos, matérias de cinema internacional, um conjunto das mais diversas entrevistas, desde artistas anônimos, famosos deturpados até doutores de renome, tudo espalhado sem contexto algum. A segunda gaveta encontrava-se vazia, um parafuso solto rolando para frente e para trás. Fechou-a, e abriu a de baixo, encontrando uma dúzia de álbuns fotográficos e, à direita, fotos avulsas. Com a consciência da falta de tempo para uma suposta investigação não programada, Damien ignorou os livretos e tirou a pilha solta. Examinando na claridade que os trovões ainda permitiam, pois a luz do quarto encontrava-se fraca dependendo apenas de dois abajures, o garoto notou não se tratarem de fotos, e sim de pinturas. Melhor dizendo: fotografias de pinturas. Em todas, um Victor com os mais diferentes rostos e poses, nunca olhando diretamente na direção do pintor. Em todas elas Victor parecia vestir trapos, roupas ao avesso, lençóis servindo de capas, panos rasgados enrolando seu corpo inteiro. Nada da grife pessoal que se encontrava em seu guarda-roupa. Damien percebeu e questionou-se longamente, por fim, sobre um detalhe característico em todas elas: havia sempre, no rosto de Victor, uma lágrima caindo, visível e brilhante, mesmo que o rosto não expressasse tristeza.
O anjo que chora os males do mundo”, pensou Damien, colocando a mão bem abaixo das costas, do lado direito do seu corpo. Naquela região, há três anos atrás, Damien imprimira para sempre em sua pele a figura de uma mulher cinzenta, longos cabelos escuros, pequenas asas negras no dorso, chorando lágrimas de sangue. Na época, talvez pelos quinze anos mal completados ou, quase que certamente, por fatores externos a ele próprio, Damien não sabia o porquê daquela figura, e só meses depois que relacionou as coisas umas às outras. Tinha certeza, entretanto, de que deveria carregá-la consigo, era seu destino obtê-la. Damien mudara muito desde então, e suas poucas experiências se converteram em grandes aprendizados.
Era como se fosse hoje, na verdade em um dia como aquele, tempestuoso, violento. Voltando de mais um dos seus trabalhos como modelo publicitário na cidade vizinha, Damien caminhava pelas calçadas de Wakefield em mais uma repugnante volta pra casa. A chuva era intensa, e não o importunava a idéia de encharcar suas meias, seu casaco ou a mochila. Para quem sempre viveu sozinho ou mesmo distante das pessoas ao seu redor, uma situação como aquela não haveria de importar. As coisas eram suas, molhava se quisesse.
Sua casa era, na opinião dos vizinhos, a mais pobre da quadra. Entretanto, se algum deles ousasse um dia entrar nela se depararia com uma ordem raramente vista para um adolescente. A ordem, contudo, era a mínima esperada: a casa se dava por dois compartimentos pequenos, que se dividiam em banheiro e o resto, sala, quarto e cozinha, juntos no compartimento maior. Devido à pequenez do ambiente, a organização era ligeira, os poucos móveis colaborando com o espaço limitado.
Damien largara a mochila sobre a cama, da qual não lembrava a última vez em que nela dormira, e entrara ligeiro embaixo do chuveiro quente. Só tomava banhos escaldantes, gostava da ardência na pele, da vermelhidão no meio do vapor. A ducha moderna destacava-se no banheiro singular, onde duas pessoas não se entenderiam ao mesmo tempo.
Um temor conhecido fez arrepiar seu corpo, que veio de fora e atingiu seus órgãos. Era o medo, inoportuno como sempre.
Apesar da sua idade questionável, Damien não se bastava de simples pensamentos, não se limitava a qualquer perfil popular, nem jamais seria um garoto comum. O fato de seu corpo, esculpido a duras penas dentro do próprio casebre, não apresentar nenhuma defeituosidade aparente só ajudava a criar a ilusão de um adolescente sadio e feliz. Nas costas, a tatuagem recente onde um anjo feminino chora em vermelho, lágrimas despencando até a nádega direita, numa figuração de dor proibida, reprimida.
A água escorria quente, como se fosse fogo líquido percorrendo sua pureza, caindo no pescoço magro, deslizando sobre o peito delineado pintando-o de vermelho, assim como os músculos mais abaixo; água que descia e atravessava a pelagem negra pubiana, água que se dividia e atravessava o membro que sempre enrijecia naquele apalpar solitário; água pura, que caía aos seus pés e escorria ao ralo, em meio aos fios capilares caídos, restos de antigas ejaculações, restos de antigos prazeres sempre solitários. Era costume, e por sua opinião, saudável. Água era vida, seja no vapor do banho, seja congelada nas pistas e lagos que tanto amava patinar, desde que fosse água, sempre seria vida, sua própria vida. A água escaldante lentamente tornava-se suportável, mas ainda doía, queimava. Nada mais estimulante, a única dor que conhecia que podia lhe dar inspiração e prazer. Mão direita, mão esquerda, apertos e esfregações, suspiros e gemidos, rigidez e danças sensuais, de Damien para ele mesmo, alternando ritmos. Milhares de sensações, tudo se resumindo na ânsia do gozo final, pois todo processo era orgástico por si só. Aquele costume, como de tantos outros garotos, se fazia único e intrínseco para Damien, menino de quinze anos físicos, mente de tantos anos mais.
Era felicidade, efêmera, mas era felicidade. Sorriu.
Damien deixou a água quente cair sobre a cabeça por mais alguns instantes, enquanto seus músculos e nervos relaxavam para o próximo serviço. Enrolando-se na toalha, pisou no pano úmido do chão frio e dirigiu-se até a sala, apertando o botão da secretária eletrônica. Enquanto ouvia a mensagem do dia, que quase sempre passavam de três, apontava o queixo para cima alongando o pescoço. Era o sr. Jeffrey Lewis outra vez. Ele não estava em uma semana boa, e seguidamente constava uma mensagem sua na secretária. Vestindo-se com a pouca roupa seca e limpa que ainda tinha ao lado da cama, Damien pegara alguns trocados sempre perdidos nos bolsos das calças e saiu em direção ao hotel da cidade, pensando como seria se colocar no lugar do Sr. Lewis, ou se algum dos seus clientes já tivera, enfim, uma semana suficientemente boa para se contentarem. Sentia medo disso.
A chuva parara, e um vento leve atravessava seus cabelos molhados parecendo acariciar seus pensamentos, uma vez que dependesse de um bom estado de espírito em qualquer um dos seus ofícios. Damien sabia desde a primeira vez que atendeu a um cliente o que eles queriam, mas principalmente conhecia o desejo íntimo guardado dentro dele próprio. O menino deixava claro, a cada primeiro encontro, quais eram seus modos de tratamento, e até onde cada um deles poderia chegar. No caso de uma discordância, Damien se despedia formalmente e voltava para casa, comprando algumas maçãs para passar a noite, quando o serviço era tardio, porém raramente isso acontecia. Preferia por essas horas noturnas, para não passar o resto do dia em casa, deitado na cama, lendo qualquer coisa que o levasse pra longe da sua realidade. Quanto mais longe, quanto mais abertos eram os espaços, quanto mais personagens estranhos e versáteis os textos guardassem, melhor. Era alívio até o sono chegar, apagando por poucas horas as muitas preocupações indevidamente impostas em um homem de quinze anos. Sono que apagava seu medo.
O quarto em que teria o encontro ficava no terceiro andar, e Jeffrey já o esperava recostado no leito, de roupão e pés descalços. Damien o cumprimentou com um piscar de olhos, retirou o moletom e a camiseta e postou-se ao lado da cama.
- Sem cerimônias, Damien, deita aqui – falou Jeffrey docemente, voz embrulhada, como se algo estivesse entalado em sua garganta. O corretor de imóveis era um adulto bastante conservado, a não ser pelas insistentes olheiras. Cabelo escuro, ralo, poucos músculos, sempre mordendo o lábio, seu aspecto aflitivo. Damien o compreendia e o respeitava, e ele pagava melhor que muitos outros.
- Você está cheiroso como sempre, menino – disse Jeffrey, balançando levemente a cabeça, de olhos fechados, enquanto Damien se ajeitava, cobrindo-os e abraçando-o por trás.
As lembranças ainda frescas traziam nostalgia triste e alegre simultaneamente para Damien, agora maior de idade, agora consciente de sua sapiência, agora de pé, mexendo onde talvez não devesse.
Admirou as fotos das pinturas de Victor outra vez e guardou-as na terceira gaveta da escrivaninha. Faltava a última. Ao abri-la, sentiu um forte cheiro de tinta e álcool, irritando suas narinas. Papéis e mais papéis, talvez mais do que na primeira e, ao contrário dessa, sem números desconexos: eram palavras, soltas, unidas, frases rabiscadas, traços retos e curvos, a pontuação forte, quando havia alguma. Junto às folhas, restos de lápis e canetas sem tampa abrigavam-se na última gaveta, manchada em todos os cantos.
Um raio explodiu atrás das colinas distantes. Ao pegar algumas folhas avulsas da gaveta, Damien sujou o polegar de azul, próximo à unha curta. Passando os olhos sobre o material, o menino percebeu alguns versos, nenhum formando um poema completo.
“Não sei como, mas tenho que confessar...”.
E na folha seguinte:
“Meu (um amor rabiscado) castigo...”.
E na detrás:
“Se sou humano e respiro
Quero ser uma pedra, dura e fria
Quero morrer à noite, sem luz do dia
Presa num cubo, a vida que me refiro”
.
Bonito”, opinou Damien para si mesmo.
A chuva ia e vinha com o vento lá fora. Largou as folhas da mão, devolveu-as à gaveta. Eram tantos pedaços sujos, alguns rasgados. Um inclusive tinha a impressão de uma sola de calçado. Estava quase fechando a gaveta quando uma das folhas, retirada de um caderno, lhe chamou a atenção. A letra estava mais caprichada, os traços mais fortes, as voltas mais delineadas, decoradas. Era outro pequeno trecho, mas que mexeu intensamente com Damien, mais que muitos poemas transpostos em páginas de um livro.
“Farei do teu suor
Perfume da minha essência
E chorarei, chorarei...”
.
Damien leu e releu várias vezes, cada vez mais impressionado com a profundidade de simples palavras, insignificantes somente para seres insensíveis ou infelizes ignorantes, no seu pensamento. “É tão belo quanto...”. Reabriu a terceira gaveta. Retirou as fotografias novamente e espalhou-as sobre a escrivaninha, com o poema ao lado. Com a mão sobre as fotos, espalhou-as como um arco ao redor da folha avulsa, e admirou todas elas.
“E chorarei, chorarei...”.
Por que ele chora?”, se perguntava Damien. Mas era tudo tão óbvio.
Há motivos para se chorar?”.
- Obrigado, Jeffrey – dissera Damien, pelo elogio recebido. Era o banho somente, não havia posto perfume algum.
- Ah, já falei que adoro ouvir você me chamando assim? – perguntou o homem, encostando a cabeça no ombro de Damien. – Todo mundo que eu conheço só me chama de “Sr. Lewis” o tempo todo, e a maioria é pessoal íntimo. Tudo bem, é sinal de respeito, cordialidade, mas cansa, e irrita tanto, menino... Se você soubesse...
Jeffrey tinha maior estatura que Damien, e mesmo assim parecia uma criança se queixando ao pai que afaga sua cabeça, apertando-o próximo ao corpo.
- Damien, posso perguntar uma coisa? Seja sincero. Você... você gosta de mim?
Silêncio.
- Gosto.
- Oh, Damien, você é tão lindo. Nunca deixe que digam o contrário. Lindo! Como pode? Um menino assim, jovem, ser tão amável, tão puro! Você é um anjo, Damien.
Outro momento de silêncio. Damien encarava a maçaneta da porta. Jeffrey continuava seu monólogo.
- Um dia, eu queria que você me contasse da sua vida, dos seus problemas, do que lhe incomoda. Eu gosto muito de você, Damien, demais. Seria capaz de dizer que te amo, todo dia penso em você, e todo dia sorrio ao lembrar que você existe.
A maçaneta era prateada, e um feio arranhão se destacava perto da fechadura.
- Você é uma das poucas pessoas que... não, você é a única pessoa que consegue me entender, consegue ver o que eu vejo, que me faz sentir bem sendo quem eu sou. Conheço tanta gente e nenhuma delas eu consigo dizer que é minha amiga. Nem minha mulher, ou aquela... drogada da minha filha... Lembra do Tyler? Pois é, nem com ele era assim, você sabe, você deve lembrar, não faz muito. Sabia que ele me ligou?
Seria muito difícil alguém conseguir espiar pelo outro lado da porta. O buraco da fechadura era tão pequeno...
- É. Mas não vai dar em nada, de novo. E eu não gosto mais dele, não como antigamente – dizia, mordiscando os cantos da boca. - Não como eu gosto de você, Damien. Você é tão especial pra mim, tem idéia disso?
Em cima e embaixo da maçaneta havia um parafuso, o de cima um tanto frouxo.
- Mas eu não posso, é impossível. Não posso gostar de você, o que diriam? Digo, é inevitável ter tanto carinho por você, mas minha vontade mesmo era ter você por perto sempre, andando comigo, vivendo comigo, dormindo comigo. Oh, Damien, por que você nunca dorme aqui comigo?
Para abrir a porta, devia girar a maçaneta para o lado da tranca. Os olhos de Damien ardiam.
- Eu sei, eu sei. Sou chato mesmo. Você não pode. Se eu não posso tanta coisa, por que você não pode, não é? E eu não posso ter você do meu lado. Não posso.
O vento tremia o vidro da janela atrás da cama. Damien estava triste. Sentiu-se infeliz.
- Damien, minha preciosidade – gemeu Jeffrey, virando o corpo e deitando a face sobre o peito do menino. – Você me salva, a cada vez que eu lhe vejo. Obrigado.
Damien apertou Jeffrey ainda mais forte. Seu cliente precisava daquilo.
Seu cliente.
- Depois que eu pegar no sono, você está livre pra sair. Deixei o dinheiro embaixo das flores.
Silêncio. E o som estrondoso das lágrimas do menino ao rolaram pelos seus poros e finos pêlos juvenis. Puros, mas nem tanto.
Nem tanto.
Victor tossira forte, mas permaneceu de olhos fechados. Damien guardou as fotos na gaveta e fechou-a. Sentou-se na beirada da cama e sentiu a temperatura da toalha branca. Não estaria morna dentro de instantes. Fez o mesmo procedimento de outrora, e limpou a leve baba no canto da boca de Victor com o polegar. O mesmo polegar sujo de azul.
Um menino assim, jovem, ser tão amável, tão puro! Você é um anjo, Damien”.
As pupilas de Victor tremeram quase imperceptíveis.
Você é tão lindo”.
Damien era lindo, e mesmo todo o poder que tinha nas mãos jamais extinguiu seu medo.
Victor era ainda mais belo assim, adormecido. Encurvado, Damien deu-lhe um singelo beijo em uma das faces. Afastou-se. Sentou no chão, dobrou os joelhos, escorou a cabeça, e adormeceu.




*****

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Próxima postagem... (dia 30/08/2008)

Enquanto a conversa se desenrola no quarto azul de Philip Dungeon, Damien explora os cantos do quarto onde dorme Victor Kopperden durante sua vigília. O que pode ser encontrado em tantos cantos escondidos? Descubra no "Capítulo 8 - A gaveta suja".

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Capítulo 7 - Responsabilidade



- Ele mordeu meu pau!
A face angustiada de Philip transparecia a dor que sentia na sua genitália. Mal teve coragem de examinar o ferimento, mas estava certo de que havia marcas dos dentes de Victor na base do seu pênis.
Dyllan adentrara o quarto de Victor onde se encontravam Damien, Yan, Ulysses e Philip, esse último entrando e saindo do banheiro com freqüência, expressando terríveis caretas.
- Trouxe alguns medicamentos para o senhor, Sr. Dungeon – disse o mordomo. - Se o caso for grave posso chamar um médico.
- Se o caso for grave?! – admirou-se Philip, os cabelos loiros e molhados agitando na sua cabeça. – Menino, você já levou uma mordida? No seu próprio p...
- Entendo sua situação, Sr. Dungeon, mas não há mais nada que eu possa f-fazer por você senão chamar um médico.
- Médico o cacete, me dá logo essa sua bolsinha – e arrancou o kit das mãos de Dyllan, se dirigindo ao banheiro e gemendo dolorosamente.
- Quer ajuda? – ofereceu-se Yan.
- Fica aí, grandalhão! – declarou Philip. – Já me basta um pervertido por hoje...
Quando Victor desmaiara na caverna, Philip derrubara-o no chão e correra para a mata, gritando desesperado por ajuda. No lampejar de um relâmpago, o garoto de programa vira num segundo seu falo ensangüentado e sujo de esperma. Em desespero, fez força para vencer a dor e esfregou-o com água da chuva, na esperança de que parasse de sangrar o mais cedo possível. Philip ainda não sabia por que Victor faria algo como aquilo com ele, mas a chuva incessante, os trovões acompanhados de clarões e a ventania fazendo o frio retornar ao seu corpo o fizeram ignorar os supostos motivos para o acidente, se tivesse sido mesmo um fato sem propósito. Vestiu suas roupas novamente, juntou Victor do chão lamacento e jogou seu corpo sobre Thundra. Assim que montou em Makos, o rude cavalo negro, segurou as duas rédeas dos animais e partiu para onde acreditava ser o caminho de volta. Obra do destino ou não, Dyllan apareceu vestindo uma capa de chuva montado em Virgo, apontando uma lanterna para os dois. Após o choque de ver seu patrão desacordado e prostrado daquela forma sobre seu cavalo e ouvir as rápidas e incompreensíveis explicações de Philip, Dyllan guiou-os pelo caminho correto – Philip estava seguindo para o lado exatamente oposto.
Cerca de trinta minutos depois, Dyllan e Philip, acompanhados dos outros três homens – Damien, Yan e Ulysses -, que já se encontravam na casa e devidamente secos, dirigiram-se às pressas ao quarto principal, carregando Victor ainda inconsciente, tropeçando pelas escadas, deixando uma trilha molhada pelo corredor de azulejos e madeira.
Logo colocaram o dono da mansão sobre a cama, Philip dirigiu-se apreensivo ao banheiro, esbravejando palavras inaudíveis, mas de vivo desgosto, em certa raiva deprimida. Dyllan pediu distância aos outros rapazes; estes o obedeceram, posicionando-se próximos à porta. Sem dar atenção às inúmeras perguntas dos atuais visitantes, Dyllan despiu seu patrão e cobriu-o com a colcha da cama. Limpou o sangue e a terra do rosto de Victor com as próprias mãos e saiu do quarto. Menos de um minuto depois estava de volta, sem a capa, oferecendo o kit médico a Philip e carregando outros utensílios numa sacola. Enquanto ele cobria seu patrão com outra colcha de pêlos, duas serviçais entraram no recinto, uma alta e magra e outra baixinha e gorda, sem muita expressão, quase robóticas, com personalidades aparentemente nulas. A mais alta trazia uma maleta de couro branco; a outra, uma chaleira e uma bolsa de borracha sobre uma bandeja de madeira. Feitas as entregas, as duas se retiraram com o destaque que entraram, e Ulysses concluiria, mais tarde, nunca mais tê-las visto pela casa ou qualquer parte do terreno.
Naquele instante, entrementes, Ulysses pôde notar o quanto Dyllan era um bom profissional, mesclando rapidez e eficiência quando o tema era seu patrão. O menino, no estado em que estava, completamente molhado, de respiração inconstante e olhos vermelhos, abriu a mala no chão e a estudou por alguns instantes. Levantou-se, e encheu a bolsa de borracha com água quente, colocando-a entre as colchas sobre os pés de Victor. Com mãos ágeis, levantou a cabeça de Victor e espalhou uma toalha clara sobre o travesseiro. Em seguida, penteou os cabelos encharcados de seu patrão inconsciente para trás, e com lenços de pano limpou por completo o rosto, o pescoço e o peito de Victor, secando-o. Cobriu-o novamente. Conferiu o pulso, as pálpebras, à princípio normais, como se estivesse dormindo. Investigou possíveis hematomas, desconfiando em última instância da conduta de Philip, mas nada encontrou a não ser o corte na testa daquela manhã, já melhor cicatrizado. Com uma luva, abriu a boca de Victor e limpou o máximo de sangue que pôde, apertando os olhos para conferir se ela apresentava também qualquer tipo de ferimento.
Por fim, Dyllan direcionou a atenção no rosto de seu patrão, fixando seus olhos castanhos na inexpressividade de Victor, desfalecido em candura.
- Não há nada mesmo que possamos fazer? – perguntou Yan, aflito, com receio de parecer impertinente.
Dyllan demorou-se mais alguns instantes na sua observação do enfermo, na afilada esperança de que ele acordasse, são. Ergueu-se, ainda olhando para Victor.
- Sr. Dungeon, está tudo bem com o senhor? – exclamou Dyllan.
Philip saiu do quarto enrolado numa das toalhas, com expressão dolorida.
- Podia estar melhor. Eu só preciso de um banho e das minhas coisas.
- Pois bem – continuou Dyllan -, então vocês todos podem sair, não preciso da sua ajuda.
Philip saiu às pressas em direção ao seu quarto. Um tanto abalados, Ulysses e Yan retiraram-se em seguida.
- Sr. Dam... digo, senhor... p-perdoe-me, eu não me lembro do seu segundo nome, senhor.
Damien permanecera no quarto. Seus olhos misteriosos, verde em meio ao castanho, perdiam-se na cena, como se a admirasse.
- Você não lembra porque eu não disse – respondeu ele, categórico e tranqüilo.
Dyllan aguardou alguns segundos como se esperasse uma resposta mais objetiva, mas sua espera foi infrutífera. Tentou ignorar a situação constrangedora.
- Por que permanece aqui... senhor?
- Eu quero ajudar.
Dyllan não conseguiu mostrar nenhuma reação. A boa intenção do rapaz chamado Damien – somente Damien – o petrificou. Assim que a realidade dos fatos retornou ao seu campo mental, Dyllan constatou que podia aproveitar-se da motivação inesperada daquele jovem visitante.
- Bem... – começou, pegando uma toalha da maleta e derramando água da chaleira sobre ela. – Eu preciso checar se o Sr. Dungeon precisa de mais alguma coisa. Se você puder ficar aqui, observando o Sr. Kopperden enquanto eu não estiver presente, ficarei agradecido.









Novamente Dyllan aguardou alguma resposta do rapaz, mas Damien se mostrou tão inerte de reações quanto antes.
- Apenas mantenha esta toalha sobre a testa dele, desse modo – mostrou, apertando levemente a toalha úmida dobrada sobre a fronte de Victor. – Assim que a toalha se resfriar, derrame um pouco mais de água sobre ela, mas apenas um pouco para não esquentá-la demais. E não faça isso com a toalha em sua testa, ou pode acontecer algo pior. Retire a toalha e coloque-a na vasilha para molhá-la.
Damien, então, caminhou vagaroso até a cama, sentou-se na borda do colchão e apertou de leve a toalha sobre a testa de Victor, e assim permaneceu até Dyllan sair.
Mais tranqüilo agora que o estresse passara, Dyllan caminhou alguns metros pelo corredor que fazia uma curva à esquerda, circundando a sala principal, até o quarto de Philip, o terceiro depois do de Victor. Pensando em suas tarefas, abriu a porta do quarto sem bater, e flagrou Philip completamente nu de costas para ele, de cabeça baixa, como se examinasse os ferimentos. Ambos se assustaram, e Dyllan deu-lhe às costas até que Philip arranjasse algo para cobrir-se.
- Garoto, eu achei que você fosse educado. Não sabe bater? Hehe...
Philip tapou-se com o mesmo roupão usado pela manhã, que ficava justo nos seus ombros largos.
- Já pode virar, menino Dyllan.
O mordomo então encarou Philip, agora devidamente coberto, e fechou a porta.
Os quartos de hóspedes da mansão Kopperden lembravam muito os quartos de hotel americanos: cama, estante, televisão, armário, banheiro. Apesar de rústico, um leve toque de modernidade nos móveis e na decoração dava um ar estilístico ao recinto. Philip ficara com o quarto azulado, e tudo que nele se encontrava era da mesma cor, os cobertores e abajures destoando para o verde claro e escuro.
- Por que sua mala está aberta, Sr. Dungeon? – perguntou Dyllan ao ver uma mala de viagens com algumas roupas jogadas dentro.
- Eu tô indo embora – disse Philip, sério.
- E-embora... como assim?! – questionou Dyllan, aturdido.
- É lógico! O teu patrãozinho é doido! Puta merda, o cara mordeu meu pau!
Dyllan baixou a cabeça visivelmente constrangido. Philip estava fora de si, despertando certo medo com sua musculatura e seu queixo quadrado, lembrando um militar expressando sua insatisfação com seus subordinados.
- E para onde o senhor vai? – perguntou Dyllan, tentando manter a calma.
- Pra qualquer lugar, algum lugar em que o teu patrão não me encontre! Nunca mais ponho os pés aqui!
Dyllan postou-se antecipadamente na frente da porta; não podia deixá-lo ir embora sem o consentimento do Sr. Victor. Tentou pensar em algum motivo para convencê-lo a ficar, mas nada muito elaborado lhe vinha à mente.
- O ferimento é sério? – perguntou Dyllan, desviando o assunto, como um enfermeiro profissional perguntaria.
- Nada que uns três dias não resolvam. Mas dói, dói bastante. Chega a arder.
- Precisa de pontos?
- Cala a boca! Nem em sonho que eu ia atravessar agulhas no meu pau.
Dyllan abaixou a cabeça, ruborizado, ainda constrangido pelo linguajar de Philip.
- Desculpa, amigo. Ele não está em seu estado perfeito, mas não é pra tanto. Vai melhorar.
O silêncio abateu-se no quarto, somente a chuva incessante fazendo-se ouvir do lado de fora e Philip jogando suas últimas peças na mochila.
- Cara, por que ele fez aquilo? – perguntou Philip, mais para si do que para Dyllan.
- Sr. Dungeon, o Sr. Kopperden teve uma crise de hipotermia, foi o que pude constatar até agora.
- Hum, não sei se é bem isso, meninão. Ele tava bem estranho... nervosinho. Por que ele me mordeu?
- Ele estava ansioso?
- Mais pra afoito.
- Em que sentido?
- No pior deles – disse Philip, relevante. – Afinal, qual o problema dele? Isso não pode ser normal, essa... sede que ele tem...
- Eu sei – admitiu Dyllan, encarando-se no espelho, saindo da frente da porta involuntariamente. Seu rosto magro estava mais pálido do que normalmente era, os cabelos grudados na testa, a roupa molhada colada ao corpo.
- Sabe? Sabe o quê?
Dyllan pensou até mesmo em não responder, mas uma inexplicável necessidade de desabafo se abateu sobre ele; precisava, também, nutrir o interesse de Philip pela conversa: era seu dever mantê-lo na casa.
- Foi culpa minha – disse, por fim.
- Peraí, peraí... Não tô entendendo nada – falou Philip agitado, sentando-se nos pés da cama. – Sentaí e explica direito.
Dyllan permaneceu em pé, mas desviou a atenção do espelho. Seu rosto acusava sua irresponsabilidade, tanto em sua falha quanto em estar falando neste assunto para aquele homem que ainda não conquistara cem por cento da sua confiança.
- O Sr. Victor precisa de medicamentos todos os dias – começou Dyllan, sua voz mansa porém amedrontada. – São apenas dois comprimidos, mas que se não forem tomados todos os dias podem causar situações como essa que passou.
- Que tipos de medicamentos ele toma?
- Eu... Eu esqueci de dá-los para o Sr. Victor hoje de manhã. Fiquei preocupado em s-servir o café, e depois mais preocupado ainda com o machucado em sua testa que nem lembrei...
- Ei, Dyllan, põe os pensamentos em ordem. Que tipo de remédios são esses? Por que é que ele toma esses remédios, que problema ele tem?
Dyllan calou-se, e Philip pôde notar que seus olhos castanhos tornaram-se marejados. O mordomo, após um breve silêncio, sentou-se ao lado de Philip e olhou fundo em seus olhos verdes e curiosos.
- Você precisa ficar. Por favor.
Philip não sabia o que dizer. Desviou o olhar e levantou-se, andando até a janela. Lá fora o tempo estava caótico, as árvores da floresta à sua direita balançavam frenéticas em todas as direções, os trovões rasgando os céus ao fundo.
- De quem é aquela casa?
- O que? – disse Dyllan, disperso.
- Lá na frente, do outro lado da estrada. De quem é?
Dyllan dirigiu-se à janela e enxergou a mansão pela luminosidade dos relâmpagos.
- É a mansão do Sr. Corris, um grande amigo do Sr. Kopperden.
Philip refletiu por um momento.
- Amizade colorida?
- Os dois são amigos de infância, respeitabilíssimos. Pondere suas palavras para com os dois.
- Tudo bem. De agora em diante tratarei melhor as “excelências”... – satirizou.
Dyllan aguardou mais um instante, e buscou o tempo apropriado para inquirir.
- O senhor ficará?
Philip respirou fundo e deu de ombros, torcendo a boca numa infelicidade cômica agora que sua ira desaparecera.
- Mesmo que eu quisesse ir embora, pra onde eu iria com o mundo desabando? Eu fico... mas vou fechar bem o meu zíper na frente do teu patrão. Tô de olho nele.
Dyllan agradeceu com um sorriso sincero. Pegou a mala no chão e a pôs sobre a cama, para facilitar o trabalho de Philip ao recolocar as roupas no armário.
- Se não for pedir demais – disse Dyllan -, não comente nada com os outros. Eu não deveria ter falado nada, para começar.
- Minha boca tá fechada. Só meus olhos tão abertos – e piscou para o mordomo.
Dyllan sorriu mais uma vez e se dirigiu para a saída. Ao abrir a porta, cambaleou para trás, tropeçando. Não esperava encontrar ninguém no corredor, muito menos alguém daquele tamanho.
Yan estava parado à sua frente. Escutara, certamente, tudo o que foi dito no quarto azul. Lá fora, o vento soprava agressivo, os clarões permanecendo inflexíveis e ininterruptos.




*****





domingo, 17 de agosto de 2008

Próxima postagem... (dia 19/08/2008)


Mesmo com o intuito de prender seus desejos, Victor cede mais uma vez e acaba cometendo uma loucura em meio à floresta, na escuridão preenchida pela tempestade, na claridade de uma fraca fogueira em uma caverna. Qual a reação de Philip, Dyllan, dos outros garotos, e do próprio Victor? Descubra no "Capítulo 7 - Responsabilidade".

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Capítulo 6 - Decidindo soluções




Bateu a testa no pé do seu criado-mudo ao cair com estrondo sobre o tapete ao lado de sua cama. Victor estava encharcado de suor, seu coração batendo acelerado. Encontrava-se nu, as costas para cima. Ouviu alguém desligando o chuveiro do seu banheiro; agora que reparara que ele estava ligado.
Yan surgiu na porta do banheiro, o corpo todo molhado, colocando a cabeça e seu denso cabelo para fora, pingando água morna no piso envernizado.
- Pobrezinho! – exclamou ele. – Caiu da cama, chefe?
Victor ainda não raciocinava direito. Aos trancos, sentou-se na cama e descansou a cabeça nas mãos. Fora um sonho, um dos mais bizarros que já tivera.
Yan voltou para dentro do banheiro e retornou parcialmente seco, esfregando a toalha branca pela cintura. Sentou-se na cama também, ainda se secando, mas Victor levantara-se. Repentinamente teve um impulso de averiguar o interior do seu toalete, e partiu apressado. O ambiente estava como regularmente estaria, a não ser pela quantidade de vapor desaparecendo aos poucos enquanto saía para o quarto. Ninguém se encontrava ali.
- O que aconteceu, chefe? – perguntou Yan, enquanto Victor voltava devagar.
- Isso... isso não podia ter acontecido...
- Acontecido o que, chefe? Olha, se isso tem alguma coisa a ver com a noite passada, tudo bem. Eu posso ser ativo na próxima vez sem maiores problemas...
Victor pensou que explodiria em excitação desvairada.
- Cala a boca! – berrou. – Fica quieto! Pára de falar.
Yan congelou por alguns instantes. Não soube o que dizer sem soar agressivo para Victor naquele estado.
- Você está sangrando, chefe. Sua cabeça.
Victor passou a mão no lugar da batida. De fato havia um corte leve acima do olho direito.
Yan levantou, juntou sua cueca usada, enrolou um roupão avulso no guarda-roupa ao lado da porta e partiu após dizer:
- Encontro você na mesa para o café, chefe.
Victor permaneceu no mesmo lugar por um minuto ou dois. Pegou dois ou três lenços umedecidos da estante e pressionou na ferida.
“O que está acontecendo? Que pesadelo foi esse? Foi algum tipo de premonição? Não pode ter sido simples descarrego de lixo cerebral, nada daquilo era lixo... talvez eu fosse, eu e meus pensamentos incoerentes que não me libertam nem em sonho”.
Os minutos seguintes foram preenchidos com um banho rápido, meias limpas, roupão macio e olhares perdidos além das montanhas no oeste, através da imensa janela do gigantesco quarto. Apressou-se na escadaria circular no fim do corredor, quase caindo nos degraus finais. Chegou na sala de jantar pouco antes de Yan entrar pela outra porta, no canto oposto que ligava à sala principal. Deu bom-dia a todos, e Yan também. Os dois se sentaram nos mesmos lugares da noite passada, trocando olhares sérios e comprometedores. Ulysses, assim como Damien e Philip, vestia um roupão similar ao de Yan, impecavelmente branco.
- Teve uma boa noite, Victor? – Ulysses perguntou, servindo-se de chá e bolinhos.
- Não, querido, não tive, mas obrigado pela preocupação. Não foi das mais relaxantes – e sorriu, sentindo o olhar de Yan queimar em sua fronte, mesmo sem encará-lo.
- Bom-dia, Sr. Kopperden – cumprimentou Dyllan, entrando na sala por onde Victor viera, com uma bandeja segurando uma xícara azul. – Aqui está seu café, senhor.
Victor olhou fundo através das pupilas do mordomo.
- Dyllan – disse ele.
Dyllan não soube como reagir, e balançou a cabeça afirmativamente. Victor pareceu sair do seu transe.
- Café? – surpreendeu-se, inalando o cheiro característico. – Por que café?
- O-ontem o senhor disse que passaria a tomar café ao invés de chá – respondeu o mordomo, sem compreender seu patrão.
- Eu disse?
- Se bem me lembro, sim, senhor.
- Tudo bem, Dyllan, obrigado – finalizou Victor, retirando os cabelos do rosto.
- Sr. Kopperden, o senhor se machucou?! – exclamou Dyllan, aturdido. Os outros lançaram os olhos para o curativo simplório na testa de Victor, e esse puxou de volta os fios loiros tampando o ferimento.
- Um pequeno acidente, Dyllan, está tudo bem, obrigado.
Dyllan postou-se em seu lugar, intrigadíssimo, e o silêncio reinou por alguns minutos. Olhares sonolentos trocavam-se entre todos, exceto Victor, que mantinha a cabeça baixa, tomando seu café.
Em meio a conversas esporádicas, Philip foi quem despertou a atenção de Victor.
- Yan, por que tem um “K” no seu roupão? – indagara ele.
Yan remexeu na cadeira e esticou o tecido até enxergar o “K” costurado no peito.
- Não faço idéia. Não tem no de vocês?
Os demais roupões eram inteiramente brancos, sem costura ou estampa. Philip sorria, atrevido.
- No nosso não. No do seu chefe, sim.
Foi então que Victor descolou sua vista do “K” nas vestes de Yan e virou-se para Philip, que agora ria para ele.
- Ah, qual é! – exclamou Philip, parecendo mais adolescente que Damien. - Lógico que ele passou a noite com você. Ei, “Vivi”, desse jeito não tem como descansar mesmo.
Victor engoliu em seco, procurando as palavras no sorriso debochado de Philip.
- Isso, como eu disse anteriormente ao próprio Yan, não deveria ter acontecido.
- E por que não? – insistiu Philip.
- Não foi assim que eu imaginei que fosse, saiu fora do planejado.
- Ontem você disse que não tinha planejado quase nada.
- Praticamente nada, mas isso que aconteceu afeta a base, vai contra as minhas intenções primordiais.
Philip manteve a boca fechada, mastigando um biscoito de açúcar, o sorriso oculto pelos movimentos da sua mandíbula.
- Não tem nada a ver com você, Yan – explicou-se Victor, pegando a mão do homem à sua esquerda. – Não era o modo como eu queria que as coisas acontecessem, é simples assim.
Damien engoliu seu iogurte e resolveu se expressar.
- E como você quer que aconteça? Você é sempre tão vago.
Victor admirou-se com a inocente audácia do garoto.
- A longo prazo, você está certo, tenho vaga idéia de como as coisas vão se seguir. Dos meus desejos fundamentais acredito que todos vocês estão cientes. Quanto a respostas breves, o que quero para agora, para hoje, é um passeio pelos arredores da casa, pelos lugares dos quais falei ontem. Dyllan?
- Sim, Sr. Kopperden?
- Diga para Celline preparar Thundra, Makos, Ingus e Emew, e escolher outro para um dos rapazes, menos Wogon.
- Para quando, senhor?
- Para o início da tarde, se possível. O tempo está bom, mas nunca se sabe o que pode acontecer por essas bandas.
- Certo, posso recolher a mesa?
- Deve, Dyllan.
O resto da manhã e o almoço foram recheados de conversas banais e perguntas sobre quem eram Celline e as supostas criaturas de alguma mitologia desconhecida citadas por Victor. Por mais suplicantes que fossem, os garotos só conseguiram pedidos de paciência por parte de Victor, o que os deixou ainda mais entusiasmados. Até Yan, como Victor pôde perceber, estava curioso e bem-humorado, deixando o anfitrião mais tranqüilo quanto ao misterioso passeio vespertino.
Por volta das catorze horas, os quatro rapazes, guiados por Victor, caminharam alguns metros saindo dos fundos do casarão até um casebre de pedra cercado por árvores que davam início a uma densa floresta em toda a área sul dos terrenos da família Kopperden. Olhando da mansão, podia-se ver que as árvores só terminavam ao encontrar as colinas, onde apenas se elevavam ou mostravam-se em outras espécies.
Pouco antes de chegarem ao casebre, Victor aproximou-se sorrateiro até Yan e puxou-lhe de leve pelo braço.
- Yan, você está melhor? – perguntou-lhe baixinho, querendo parecer solidário.
- Sim, estou – respondeu Yan, suspirando. - Apenas fiquei assustado de manhã, mas já passou a crise, não?
- Yan, não foi uma crise. Foi... – “O que estou tentando dizer?” – Ok. Se você pensar assim, ótimo. Foi uma crise momentânea. É que eu tive um sonho absurdo, acordei com medo.
- Nossa, e como foi o sonho?
- Ah, Yan, foi tão desagradável que não vale a pena ser contado. Esqueça isso.
Os dois seguiram os outros homens que já entravam na casa de pedra. Victor não pôde suportar.
- Yan, quando você tomou banho... estava tudo no lugar? Digo, você está inteiro?
O rapaz abriu seu sorriso encantador, e respondeu com carinho:
- Certo, foi um estrondo, mas pra me destruir é preciso muito mais. Da cabeça aos pés, dois metros e um - só para você, chefe.
Com uma piscadela, Yan puxou Victor para fora do campo de visão de quem estivesse dentro do casebre, mas Victor afastou a cabeça a tempo de evitar um beijo desnecessário.
- É melhor não, Yan – disse ele, resistindo à tentação dos lábios firmes do rapaz. – Por favor.
- Sem problemas, desculpe.
Os dois então entraram no estabelecimento. Yan percebeu no mesmo instante se tratar de um celeiro, onde cerca de vinte eqüinos encontravam-se cercados por pequenas muretas, cada um com cerca de dez metros quadrados de terra e palha para ocupar. Além dos quatro convidados e de Victor, Dyllan e uma bela mulher negra achavam-se próximos a seis cavalos fortes, três marrons, dois pretos e um branco. Um dos cavalos pretos ainda estava sem sela, e a moça aprumou-se ligeira para amarrar e prender todos os cintos ao redor do esbelto cavalo negro.
- Boa tarde! Todos bem, Celline? – cumprimentou Victor.
- Sr. Kopperden, nem pergunta de mim antes! – retrucou a moça, aparentemente ofendida.
- Ah, claro, vocês todos estão bem? Isso inclui você, Celline.
A mulher desatou a gargalhar enquanto secava o suor da testa com as mangas do macacão. Celline, como Dyllan viera a explicar depois, era uma antiga empregada da família Kopperden que se mudara com o pai ainda menina na vizinhança. Quando seu pai morreu mordido por uma cobra durante uma pescaria, o Sr. Anthon Kopperden, pai de Victor, apiedou-se da menina e deu a ela tudo que precisava: estudo, alimento, moradia e carinho. Ela crescera correndo pelos vastos campos, desbravando a floresta sempre que podia, às vezes até se perdendo por seus atalhos. Os anos se passaram, e quando o velho Norman, antigo empregado que cuidava das fazendas da redondeza, viera a falecer, Celline já estava mais que instruída a ocupar o cargo de confiança e o trabalho duro junto aos veterinários que faziam visitas constantes aos animais. Hoje em dia, ela cuidava exclusivamente dos cavalos, éguas e dos cachorros que faziam a vigília dos arredores do terreno dos Kopperden. Celline tinha em média trinta anos, e era tão forte como um homem trabalhador comum. Sua voz era firme, todavia tinha temperamento brando, e lembrava a Yan uma tia faceira que há muito não via.
- Sejam bem-vindos, rapazes – falou ela, baixando a cabeça levemente. – Escolham o que mais lhes agradar, exceto Virgo, que é do nosso Dyllan – e esfregou a mão no mais belo alazão à esquerda dela.
Yan e Damien escolheram os outros cavalos cor de canela – Ingus e Emew, respectivamente – e Philip e Ulysses montaram nos outros dois animais negros, Makos e Lylo. Ulysses mostrou grande habilidade na montaria, e logo disparou para fora, dando um giro completo e empinando o cavalo com força, um verdadeiro cavaleiro de chapéu e tudo o mais. Victor aproximou-se do seu cavalo, Thundra, um deslumbrante eqüino com seu pêlo branco bem escovado e perfumado, diferente dos outros pela pequena máscara que o distinguia: esse era o cavalo do Sr. G. Kopperden.
Celline dera as últimas verificadas em Thundra enquanto os rapazes saíam do celeiro.
- Pensa em ir muito longe, patrão? – perguntou Celline, concentrada em amarrar firme a sela do cavalo imponente.
- Não muito, o suficiente para eles conhecerem o que tem de bom por aqui.
- Certo. É bom não se distanciar muito, Thundra está um pouco ansioso, isso é sinal de tempo ruim.
- Com este sol?
- Pois é, mas sabe como é verão. É início da estação, o clima muda de uma hora pra outra. É só um conselho, não vá muito longe para poder voltar depressa se precisar.
- Se Celline diz, o pequeno Victor faz.
- Você é maior do que imagina, amigão. Nunca pense o contrário.
Victor sorriu com afeto para a amiga de infância e bateu os pés de leve nas laterais do seu cavalo. Lá fora, Ulysses retornava para junto do grupo.
- Adorei esse daqui – disse ele.
- Lylo normalmente é arredio – informou Victor -, mas parece ter gostado de você.
- Victor... – começou Damien, numa postura exemplar em cima de Emew. – E se por acaso eu não quisesse andar a cavalo?
- Você não quer?
- Não é isso, é uma hipótese.
- Agora é você quem está sendo vago, onde você quer chegar?
- Lugar nenhum. Deixa pra lá, são coisas minhas.
Victor tentava, mas longe estava de chegar a uma conclusão coerente sobre o que se passava na cabeça daquele garoto.
- Se preferir pode ficar em casa, tem muita coisa pra fazer lá também. Seria interessante se todos fôssemos.
- Para onde seguimos, Sr. Kopperden? – questionou Dyllan, dando um ponto final à conversa.
- Deixo o papel de guia para você, Dyllan, mas sugiro a cachoeira.
- Não é muito longe?
- Ah, ninguém está com pressa aqui. Afinal, esses cavalos precisam de exercícios; Celline está preocupada com o ânimo dos pobres bichos.
Ninguém comentou nada durante um tempo, enquanto uma brisa confortável sacudia as vestes e os cabelos de todos. Atrás deles, a imensa floresta aparentemente não desbravada, mostrando vida através do balanço. Foi na direção da mesma floresta que Dyllan guiou Virgo.
- Vamos, Lylo! – ordenou Ulysses, e o animal partiu veloz ultrapassando a todos, inclusive Virgo.
Logo a impressão de abandono daquela região se desfez, e os seis cavalos iniciaram a pequena jornada por uma estrada de terra sob a sombra das árvores. Os primeiros quilômetros seguiram-se com tranqüilidade, Victor reparando no suposto amedrontamento de Damien e numa inesperada introspecção de Philip que, galopando com Makos ao seu lado, dirigia-lhe olhares furtivos.
“Furtivos, dispersos, perdidos, focados, límpidos, doces, lacrimejantes, iluminados... que olhos os dele, e de todos os outros. Como estarão os meus? Fechados. Fechados a essas impressões errôneas. Estupidez achar que bloquearei meus pensamentos absurdos tampando minha visão. Eu vejo com meus sentidos, no toque, na visão, ouvindo, cheirando, provando, com o sexto, sétimo, décimo sentido, múltiplos sentidos. Mistura sórdida, sempre sórdida, tendendo a continuar até se tornar perpétuo e irreversível. Sensitivo e insensível ao mesmo tempo”.
Dyllan liderava a trupe, Ulysses cavalgando ao lado, apontando para tudo que lhe lembrasse sua terra natal. Yan mantinha-se levemente afastado, mas Victor tinha certeza de que não tardaria e ele seria o mesmo Yan que entrara em sua mansão no dia anterior.
A trilha foi ficando escorregadia e lamacenta após uma hora de passeio. A umidade não chegava a ser um transtorno, mas era sentida no toque dos arreios e nos fios de cabelo que se tornavam quebradiços e disformes. Victor suava sobre o lombo de Thundra, o calor na parte interna das coxas incomodando insistentemente. Ao redor, o que se podia perceber além das árvores revoltadas como se brigassem com o ar da ventania eram grandes pedregulhos deslocados, aleatoriamente localizados no meio dos arbustos e ervas pegajosas. Dyllan aproximou-se com o alazão Virgo, com perfeita postura digna de um cavaleiro.
- Tudo bem com o senhor, Sr. Kopperden? – perguntou ele de voz tímida e embargada. Victor levou certo tempo para perceber a presença do mordomo e a processar suas palavras gentis.
- Comigo? Sim, estou bem, apenas cansado. “Entediado, talvez”.
- Sua cabeça está doendo? – apontou Dyllan para o curativo escondido por mechas díspares na testa de Victor.
- Nem um pouco. Obrigado, Dyllan.
Aos poucos foi escurecendo, tão rápido que Victor questionou-se se deveriam mesmo chegar até o lago. Thundra tremia mais que o normal. Não devia passar de três e meia da tarde, e mesmo assim a iluminação sob as árvores tornava-se mais sombria a cada cem metros que avançavam. Todos sentiam certo frio, e Damien já fechara seu casaco até o queixo. Um infeliz arrependimento bateu no peito de Victor. Mais um dos seus impulsos não planejados, essa longa cavalgada sem rumo.
“Algo tem rumo em minhas troteadas pela vida?”.
Ao descerem um declive, Lylo, o cavalo de Ulysses, começou a relinchar e bater os cascos no chão terroso com nervosismo. Tamanho era seu espanto que, se Ulysses não fosse um experiente montador, poderia muito bem ter caído das costas de Lylo, que não parecia ter o mesmo senso de premonição de Thundra, que apenas ficava nervoso em clima úmido mostrando seu desgosto por climas variáveis.
- Victor, acho melhor levá-lo de volta – sugeriu Dyllan.
- Ótimo – expressou Ulysses -, você leva ele e eu fico com o seu, posso?
- Jamais, Sr. Loyola – decretou Dyllan, que mesmo sem rispidez deixou claro sua autoridade sobre seu animal de estimação.
- Hum, certo. Posso seguir com você, Victor?
“Esse sentimento vem e vai. Por que não pára?”.
- Também não – impôs Dyllan, calmo acima de tudo. – Um cavalo como Thundra tolera um peso limitado, e dois na garupa em tamanha distância pode prejudicar a saúde dele. É o cavalo do Sr. Kopperden. Você vem comigo. Consegue controlá-lo?
- Acho que sim, meu pulso é firme.
- Certamente. Siga-me. Com sua licença, Sr. Kopperden.
Victor manteve silêncio. Não contestara as palavras de Dyllan porque eram, de fato, verdades, e devido ao seu longo relacionamento com Dyllan pouco levara em consideração o tom gélido de suas determinações. Dyllan pegou as rédeas de Lylo e partiu com Ulysses.
- Victor – falou Damien -, eu acho que vou com eles. Estou com frio.
- Você não costuma patinar? – observou Victor.
- Estou cansado, minhas... nádegas doem.
Damien enrubeceu de leve, e Victor não pôde fazer nada a não ser deixá-lo ir, sinalizando com a cabeça. Em menos de um minuto, Dyllan, Ulysses e Damien perderam-se nas sombras verdes da floresta. Yan e Philip continuaram seguindo Victor até a cachoeira.
- Acho que vou voltar também, chefe – disse Yan quebrando o silêncio passados alguns minutos.
- Oh, tudo bem, Sr. Hick – lamentou Victor. – Nos vemos no jantar?
- Com toda certeza, chefe.
- Pare de me chamar de chefe – pediu Victor informalmente, ao que Yan retribuiu com o já conhecido sorriso de menino levado, partindo em seguida a forte galope.
Restavam ele e Philip, agora troteando devagar como dois exploradores. Na mata fechada, tudo que se ouvia eram o respirar dos cavalos e suas ferraduras chocando-se com algumas pedras soltas da nova estradinha.
“Por que...?”.
- Foram todos embora, não é justo... – lamentava-se Victor.
- Vai chover, é isso – concluiu Philip.
- O que? O Sr. Dungeon também prevê o tempo?
- Ninguém precisa prever nada pra sentir. Esse vento... Mesmo no meio de uma floresta dá pra notar. É chuva. Mas eu ainda não fui embora, não.
“Solução. Preciso resolver. Até quando?”.
Uma gota de suor frio desceu pela testa de Victor. A chuva traz frio, e o frio, desconforto. Para onde ir?
- Me siga. Há alguns nichos bem espaçosos nessas rochas, podemos conseguir abrigo.
Ambos partiram com Thundra e Makos, mas o banho de chuva foi inevitável. Das nuvens despencaram grossas e pesadas gotas d’água, tornando o terreno lamacento em questão de instantes. Levaram certo tempo até encontrar uma pequena caverna no meio da tempestade e da ventania. Logo ao entrarem, desmontaram dos cavalos e os colocaram próximos da saída, protegidos da água. Enquanto Philip despia a camiseta e tratava de torcê-la, Victor, na sua experiência de explorador dos próprios campos, acendia uma fogueira na base da habilidade e da sorte: galhos secos se encontravam amontoados em um canto, talvez restos de uma antiga visita de Celline.
O que Victor não previra, além do trajeto do passeio, era ver Philip completamente ensopado, pendurando suas roupas sobre as pedras. A medida que ele retirava as calças, Victor fechava os olhos, apertava-os dentro da cabeça. Pensou em pôr um dedo no fogo para desviar a atenção. Definitivamente, aquela não era a solução.
- Qual dos cavalos era Wogon? – perguntou Philip. – Você falou nesse nome na mesa do café.
- Que boa memória você tem, rapaz. Wogon é um cavalo especial. Ninguém monta nele. Ele tem um compartimento reservado, recebe cuidados especiais.
Victor respondeu à Philip batendo os dentes, tremendo-se por completo. A fogueira não parecia aquecer.
- Hei, patrão, melhor torcer suas roupas também – falou Philip, quase despido por completo. – Sem estresse, é por causa de resfriado mesmo.
“Insistência maldita...”.
- Sem problemas, cara – dizia Philip, retirando a força o casaco e a camiseta de um Victor encharcado. – Eu ouvi o que você disse lá na mansão, não se preocupa. Eu entendi.
Philip tirou o resto da roupa de Victor, que parecia ter entrado em estado mórbido, olhar desatento, mudando constantemente de direção.
- Uma vez vi num filme, aquele que o mundo vira gelo, já viu? Vi que o calor humano “é o mais poderoso de todos”, que é bom mesmo. Se não for ruim pra você...
Victor não prestara real atenção, e quando deu por si estava envolvido pelos braços do loiro latino. Calor. Calor humano. Calor dele.
“Calor de homem”.
Calor. Conforto.
“Foda-se”.
- Foda-se – soltou Victor.
- Que?
- Foda-se o que eu disse, me deixa.
Philip estava claramente confuso, mesmo que seu rosto estivesse mal iluminado pela luz fraca do fogo. Foi essa luz fraca, entretanto, que permitiu a Victor a visão sexualmente destrutiva de Philip, digno de um muso inspirador para qualquer artista, vestindo somente uma cueca clara que, molhada por completo, lhe deixava transparente na frente, atrás e nas laterais.
- Lhe deixar? O que?
- Eu quero chupar você.
- Como assim? Eu nem tô excitado, Victor. Assim não rola.
- Não me contrarie – dizia Victor, olhar desfocado dirigido ao relevo sobre a cueca. – E que fique registrado, nunca mais me chame de “Vivi”.
Por mais que Philip buscasse fugir, o espaço limitado da caverna não lhe deu alternativa. Victor lhe abocanhara entre as pernas naquele estado mesmo, frio, mole, sem tesão algum. Tamanha sua vontade em excitá-lo fez Philip perder o controle mais cedo do que o rapaz pensava ser capaz. Bastaram alguns movimentos com a língua para Victor sentir o pênis rígido dentro da boca, que quente como estava aquecia o resto de todo o corpo, muito mais que um abraço, já esquecido por Victor.
- Se vai fazer, faz com vontade – balbuciou Philip, agarrando com força os cabelos molhados de Victor e forçando a garganta dele. Segurava-o com uma mão, com as duas, em ritmo violento. De vez em quando, retirava o membro da boca de Victor batia-lhe no rosto como se quisesse machucá-lo, para depois colocar tudo até o final naquela boca morna que sugava tão bem.
Era daquilo que Victor precisava: um pênis para chupar. Exatamente nessas palavras, um pênis para chupar. Sentir prazer ao dar prazer para um homem bastava para Victor. Era a cura para a doença dos seus delírios, da sua imaginação, de suas fantasias que há tempos não eram mais íntimas a ninguém, nem à própria natureza, que fez de Victor Kopperden quem ele era, imperfeito. A glande, o suco leitoso, os nervos, veias, os pêlos perdendo-se na língua, língua que passeava pelos testículos, o gosto salgado da água transformada em suor, do acúmulo de saliva à inundação do líquido branco e amargo, o éter necessário, sempre necessário. Gozo. Tudo fazia parte do ritual, onde Victor era o participante humano, o objeto, o atuante, o plano e a execução.
Philip batera a cabeça na parede rochosa ao ejacular, perdendo a noção dos sentidos, contorcendo-se por completo, esfregando suas costas na parede de pedra pura. Nunca havia sentido tanto delírio em algo tão simples como sexo oral feito por um gay afoito.
O prazer, porém, transformara-se em dor. A dor, porém, não vinha da cabeça, vinha do seu membro ainda rígido. Horrível dor, dor que talvez sangrasse. Sangue? Sim, pensou que fosse, quando se deu conta que de fato era.
Victor amolecera, seus braços soltos e relaxados, ajoelhado, olhos fechados, sua boca ensangüentada entalada com o pênis de Philip. Ardência e medo.
Victor estava desacordado.



*****