sábado, 30 de agosto de 2008

Capítulo 8 - A gaveta suja




Logo que Dyllan retirou-se do quarto, Damien permaneceu observando Victor por alguns instantes, como se tentasse compreendê-lo por completo através da sua respiração. Quando a toalha branca pareceu esfriar, Damien retirou-a da testa do enfermo e fez como Dyllan dissera, colocando-a na vasilha ao lado da cama e molhando-a na água quente da chaleira. Com um cuidado fraternal, repôs a toalha sobre a fronte molhada de Victor, continuando a compressa. Ao que tudo indicava, Victor continuaria adormecido por um tempo considerável, o que deu a Damien privacidade para perambular pelo ambiente.
O dormitório do Sr. Kopperden era visivelmente maior que o de Damien. O teto negro dava a impressão de profundidade, sua altura indefinida. Numa rápida observação, Damien forçou-se a concluir que, apesar de tanta riqueza aparente, a mansão, no geral, era simples, nada de muito extravagante. Os móveis não pesavam no visual, tampouco contrastavam com a arquitetura rústica e moderna ao mesmo tempo, num exotismo nunca visto antes por aquele garoto.
Ao contrário do quarto onde se hospedava, o dormitório de Victor abrangia mais espaço, o que permitia maior disponibilidade de móveis. Apesar disso, nada de muito excêntrico se era possível encontrar, deixando grandes espaços vazios. Pela mente de Damien, era um reflexo da solidão eminente daquele homem. Suas conclusões sobre Victor Kopperden eram poucas e vagas, quase nunca concretas, com brechas para tantas interpretações que o faziam calar e parar para pensar com calma. Quando pensar cansava, fechava os olhos, se retirava, dormia um pouco, lia algum livro grosso ou fazia algum exercício. Eram poucos dias de convivência, de fato, mas dadas as circunstâncias, cada minuto de ingenuidade parecia perdido para Damien.
Já de pé, o garoto caminhou até o guarda-roupa claro, abrindo as duas portas centrais. Localizado próximo à saída para o corredor, o móvel abrigava peças excepcionalmente belas, que certamente custariam o preço de banquetes. Damien retirou algumas peças para observá-las, e não encontrou nenhuma etiqueta que indicasse marcas ou grifes, o que o fez pensar em roupas exclusivas, feitas sob medida, exemplares únicos e estilizados. Recolocando as peças no lugar, constatou, num segundo vislumbre, que o guarda-roupa adentrava a parede, onde outras tantas peças admiráveis se penduravam em hastes de correr. Fechou as portas com um leve estrondo, voltando-se para ver se Victor teria despertado. Como o dono do quarto permanecia de olhos cerrados, Damien seguiu em direção a uma pequena escrivaninha, ao lado do toalete róseo.
Afastando uma cadeira giratória de tecido escuro, Damien ia abrindo as gavetas laterais uma por uma. Na primeira delas, uma quantidade infinita de papéis e documentos a entulhavam, apresentando recortes de jornais antigos, matérias de cinema internacional, um conjunto das mais diversas entrevistas, desde artistas anônimos, famosos deturpados até doutores de renome, tudo espalhado sem contexto algum. A segunda gaveta encontrava-se vazia, um parafuso solto rolando para frente e para trás. Fechou-a, e abriu a de baixo, encontrando uma dúzia de álbuns fotográficos e, à direita, fotos avulsas. Com a consciência da falta de tempo para uma suposta investigação não programada, Damien ignorou os livretos e tirou a pilha solta. Examinando na claridade que os trovões ainda permitiam, pois a luz do quarto encontrava-se fraca dependendo apenas de dois abajures, o garoto notou não se tratarem de fotos, e sim de pinturas. Melhor dizendo: fotografias de pinturas. Em todas, um Victor com os mais diferentes rostos e poses, nunca olhando diretamente na direção do pintor. Em todas elas Victor parecia vestir trapos, roupas ao avesso, lençóis servindo de capas, panos rasgados enrolando seu corpo inteiro. Nada da grife pessoal que se encontrava em seu guarda-roupa. Damien percebeu e questionou-se longamente, por fim, sobre um detalhe característico em todas elas: havia sempre, no rosto de Victor, uma lágrima caindo, visível e brilhante, mesmo que o rosto não expressasse tristeza.
O anjo que chora os males do mundo”, pensou Damien, colocando a mão bem abaixo das costas, do lado direito do seu corpo. Naquela região, há três anos atrás, Damien imprimira para sempre em sua pele a figura de uma mulher cinzenta, longos cabelos escuros, pequenas asas negras no dorso, chorando lágrimas de sangue. Na época, talvez pelos quinze anos mal completados ou, quase que certamente, por fatores externos a ele próprio, Damien não sabia o porquê daquela figura, e só meses depois que relacionou as coisas umas às outras. Tinha certeza, entretanto, de que deveria carregá-la consigo, era seu destino obtê-la. Damien mudara muito desde então, e suas poucas experiências se converteram em grandes aprendizados.
Era como se fosse hoje, na verdade em um dia como aquele, tempestuoso, violento. Voltando de mais um dos seus trabalhos como modelo publicitário na cidade vizinha, Damien caminhava pelas calçadas de Wakefield em mais uma repugnante volta pra casa. A chuva era intensa, e não o importunava a idéia de encharcar suas meias, seu casaco ou a mochila. Para quem sempre viveu sozinho ou mesmo distante das pessoas ao seu redor, uma situação como aquela não haveria de importar. As coisas eram suas, molhava se quisesse.
Sua casa era, na opinião dos vizinhos, a mais pobre da quadra. Entretanto, se algum deles ousasse um dia entrar nela se depararia com uma ordem raramente vista para um adolescente. A ordem, contudo, era a mínima esperada: a casa se dava por dois compartimentos pequenos, que se dividiam em banheiro e o resto, sala, quarto e cozinha, juntos no compartimento maior. Devido à pequenez do ambiente, a organização era ligeira, os poucos móveis colaborando com o espaço limitado.
Damien largara a mochila sobre a cama, da qual não lembrava a última vez em que nela dormira, e entrara ligeiro embaixo do chuveiro quente. Só tomava banhos escaldantes, gostava da ardência na pele, da vermelhidão no meio do vapor. A ducha moderna destacava-se no banheiro singular, onde duas pessoas não se entenderiam ao mesmo tempo.
Um temor conhecido fez arrepiar seu corpo, que veio de fora e atingiu seus órgãos. Era o medo, inoportuno como sempre.
Apesar da sua idade questionável, Damien não se bastava de simples pensamentos, não se limitava a qualquer perfil popular, nem jamais seria um garoto comum. O fato de seu corpo, esculpido a duras penas dentro do próprio casebre, não apresentar nenhuma defeituosidade aparente só ajudava a criar a ilusão de um adolescente sadio e feliz. Nas costas, a tatuagem recente onde um anjo feminino chora em vermelho, lágrimas despencando até a nádega direita, numa figuração de dor proibida, reprimida.
A água escorria quente, como se fosse fogo líquido percorrendo sua pureza, caindo no pescoço magro, deslizando sobre o peito delineado pintando-o de vermelho, assim como os músculos mais abaixo; água que descia e atravessava a pelagem negra pubiana, água que se dividia e atravessava o membro que sempre enrijecia naquele apalpar solitário; água pura, que caía aos seus pés e escorria ao ralo, em meio aos fios capilares caídos, restos de antigas ejaculações, restos de antigos prazeres sempre solitários. Era costume, e por sua opinião, saudável. Água era vida, seja no vapor do banho, seja congelada nas pistas e lagos que tanto amava patinar, desde que fosse água, sempre seria vida, sua própria vida. A água escaldante lentamente tornava-se suportável, mas ainda doía, queimava. Nada mais estimulante, a única dor que conhecia que podia lhe dar inspiração e prazer. Mão direita, mão esquerda, apertos e esfregações, suspiros e gemidos, rigidez e danças sensuais, de Damien para ele mesmo, alternando ritmos. Milhares de sensações, tudo se resumindo na ânsia do gozo final, pois todo processo era orgástico por si só. Aquele costume, como de tantos outros garotos, se fazia único e intrínseco para Damien, menino de quinze anos físicos, mente de tantos anos mais.
Era felicidade, efêmera, mas era felicidade. Sorriu.
Damien deixou a água quente cair sobre a cabeça por mais alguns instantes, enquanto seus músculos e nervos relaxavam para o próximo serviço. Enrolando-se na toalha, pisou no pano úmido do chão frio e dirigiu-se até a sala, apertando o botão da secretária eletrônica. Enquanto ouvia a mensagem do dia, que quase sempre passavam de três, apontava o queixo para cima alongando o pescoço. Era o sr. Jeffrey Lewis outra vez. Ele não estava em uma semana boa, e seguidamente constava uma mensagem sua na secretária. Vestindo-se com a pouca roupa seca e limpa que ainda tinha ao lado da cama, Damien pegara alguns trocados sempre perdidos nos bolsos das calças e saiu em direção ao hotel da cidade, pensando como seria se colocar no lugar do Sr. Lewis, ou se algum dos seus clientes já tivera, enfim, uma semana suficientemente boa para se contentarem. Sentia medo disso.
A chuva parara, e um vento leve atravessava seus cabelos molhados parecendo acariciar seus pensamentos, uma vez que dependesse de um bom estado de espírito em qualquer um dos seus ofícios. Damien sabia desde a primeira vez que atendeu a um cliente o que eles queriam, mas principalmente conhecia o desejo íntimo guardado dentro dele próprio. O menino deixava claro, a cada primeiro encontro, quais eram seus modos de tratamento, e até onde cada um deles poderia chegar. No caso de uma discordância, Damien se despedia formalmente e voltava para casa, comprando algumas maçãs para passar a noite, quando o serviço era tardio, porém raramente isso acontecia. Preferia por essas horas noturnas, para não passar o resto do dia em casa, deitado na cama, lendo qualquer coisa que o levasse pra longe da sua realidade. Quanto mais longe, quanto mais abertos eram os espaços, quanto mais personagens estranhos e versáteis os textos guardassem, melhor. Era alívio até o sono chegar, apagando por poucas horas as muitas preocupações indevidamente impostas em um homem de quinze anos. Sono que apagava seu medo.
O quarto em que teria o encontro ficava no terceiro andar, e Jeffrey já o esperava recostado no leito, de roupão e pés descalços. Damien o cumprimentou com um piscar de olhos, retirou o moletom e a camiseta e postou-se ao lado da cama.
- Sem cerimônias, Damien, deita aqui – falou Jeffrey docemente, voz embrulhada, como se algo estivesse entalado em sua garganta. O corretor de imóveis era um adulto bastante conservado, a não ser pelas insistentes olheiras. Cabelo escuro, ralo, poucos músculos, sempre mordendo o lábio, seu aspecto aflitivo. Damien o compreendia e o respeitava, e ele pagava melhor que muitos outros.
- Você está cheiroso como sempre, menino – disse Jeffrey, balançando levemente a cabeça, de olhos fechados, enquanto Damien se ajeitava, cobrindo-os e abraçando-o por trás.
As lembranças ainda frescas traziam nostalgia triste e alegre simultaneamente para Damien, agora maior de idade, agora consciente de sua sapiência, agora de pé, mexendo onde talvez não devesse.
Admirou as fotos das pinturas de Victor outra vez e guardou-as na terceira gaveta da escrivaninha. Faltava a última. Ao abri-la, sentiu um forte cheiro de tinta e álcool, irritando suas narinas. Papéis e mais papéis, talvez mais do que na primeira e, ao contrário dessa, sem números desconexos: eram palavras, soltas, unidas, frases rabiscadas, traços retos e curvos, a pontuação forte, quando havia alguma. Junto às folhas, restos de lápis e canetas sem tampa abrigavam-se na última gaveta, manchada em todos os cantos.
Um raio explodiu atrás das colinas distantes. Ao pegar algumas folhas avulsas da gaveta, Damien sujou o polegar de azul, próximo à unha curta. Passando os olhos sobre o material, o menino percebeu alguns versos, nenhum formando um poema completo.
“Não sei como, mas tenho que confessar...”.
E na folha seguinte:
“Meu (um amor rabiscado) castigo...”.
E na detrás:
“Se sou humano e respiro
Quero ser uma pedra, dura e fria
Quero morrer à noite, sem luz do dia
Presa num cubo, a vida que me refiro”
.
Bonito”, opinou Damien para si mesmo.
A chuva ia e vinha com o vento lá fora. Largou as folhas da mão, devolveu-as à gaveta. Eram tantos pedaços sujos, alguns rasgados. Um inclusive tinha a impressão de uma sola de calçado. Estava quase fechando a gaveta quando uma das folhas, retirada de um caderno, lhe chamou a atenção. A letra estava mais caprichada, os traços mais fortes, as voltas mais delineadas, decoradas. Era outro pequeno trecho, mas que mexeu intensamente com Damien, mais que muitos poemas transpostos em páginas de um livro.
“Farei do teu suor
Perfume da minha essência
E chorarei, chorarei...”
.
Damien leu e releu várias vezes, cada vez mais impressionado com a profundidade de simples palavras, insignificantes somente para seres insensíveis ou infelizes ignorantes, no seu pensamento. “É tão belo quanto...”. Reabriu a terceira gaveta. Retirou as fotografias novamente e espalhou-as sobre a escrivaninha, com o poema ao lado. Com a mão sobre as fotos, espalhou-as como um arco ao redor da folha avulsa, e admirou todas elas.
“E chorarei, chorarei...”.
Por que ele chora?”, se perguntava Damien. Mas era tudo tão óbvio.
Há motivos para se chorar?”.
- Obrigado, Jeffrey – dissera Damien, pelo elogio recebido. Era o banho somente, não havia posto perfume algum.
- Ah, já falei que adoro ouvir você me chamando assim? – perguntou o homem, encostando a cabeça no ombro de Damien. – Todo mundo que eu conheço só me chama de “Sr. Lewis” o tempo todo, e a maioria é pessoal íntimo. Tudo bem, é sinal de respeito, cordialidade, mas cansa, e irrita tanto, menino... Se você soubesse...
Jeffrey tinha maior estatura que Damien, e mesmo assim parecia uma criança se queixando ao pai que afaga sua cabeça, apertando-o próximo ao corpo.
- Damien, posso perguntar uma coisa? Seja sincero. Você... você gosta de mim?
Silêncio.
- Gosto.
- Oh, Damien, você é tão lindo. Nunca deixe que digam o contrário. Lindo! Como pode? Um menino assim, jovem, ser tão amável, tão puro! Você é um anjo, Damien.
Outro momento de silêncio. Damien encarava a maçaneta da porta. Jeffrey continuava seu monólogo.
- Um dia, eu queria que você me contasse da sua vida, dos seus problemas, do que lhe incomoda. Eu gosto muito de você, Damien, demais. Seria capaz de dizer que te amo, todo dia penso em você, e todo dia sorrio ao lembrar que você existe.
A maçaneta era prateada, e um feio arranhão se destacava perto da fechadura.
- Você é uma das poucas pessoas que... não, você é a única pessoa que consegue me entender, consegue ver o que eu vejo, que me faz sentir bem sendo quem eu sou. Conheço tanta gente e nenhuma delas eu consigo dizer que é minha amiga. Nem minha mulher, ou aquela... drogada da minha filha... Lembra do Tyler? Pois é, nem com ele era assim, você sabe, você deve lembrar, não faz muito. Sabia que ele me ligou?
Seria muito difícil alguém conseguir espiar pelo outro lado da porta. O buraco da fechadura era tão pequeno...
- É. Mas não vai dar em nada, de novo. E eu não gosto mais dele, não como antigamente – dizia, mordiscando os cantos da boca. - Não como eu gosto de você, Damien. Você é tão especial pra mim, tem idéia disso?
Em cima e embaixo da maçaneta havia um parafuso, o de cima um tanto frouxo.
- Mas eu não posso, é impossível. Não posso gostar de você, o que diriam? Digo, é inevitável ter tanto carinho por você, mas minha vontade mesmo era ter você por perto sempre, andando comigo, vivendo comigo, dormindo comigo. Oh, Damien, por que você nunca dorme aqui comigo?
Para abrir a porta, devia girar a maçaneta para o lado da tranca. Os olhos de Damien ardiam.
- Eu sei, eu sei. Sou chato mesmo. Você não pode. Se eu não posso tanta coisa, por que você não pode, não é? E eu não posso ter você do meu lado. Não posso.
O vento tremia o vidro da janela atrás da cama. Damien estava triste. Sentiu-se infeliz.
- Damien, minha preciosidade – gemeu Jeffrey, virando o corpo e deitando a face sobre o peito do menino. – Você me salva, a cada vez que eu lhe vejo. Obrigado.
Damien apertou Jeffrey ainda mais forte. Seu cliente precisava daquilo.
Seu cliente.
- Depois que eu pegar no sono, você está livre pra sair. Deixei o dinheiro embaixo das flores.
Silêncio. E o som estrondoso das lágrimas do menino ao rolaram pelos seus poros e finos pêlos juvenis. Puros, mas nem tanto.
Nem tanto.
Victor tossira forte, mas permaneceu de olhos fechados. Damien guardou as fotos na gaveta e fechou-a. Sentou-se na beirada da cama e sentiu a temperatura da toalha branca. Não estaria morna dentro de instantes. Fez o mesmo procedimento de outrora, e limpou a leve baba no canto da boca de Victor com o polegar. O mesmo polegar sujo de azul.
Um menino assim, jovem, ser tão amável, tão puro! Você é um anjo, Damien”.
As pupilas de Victor tremeram quase imperceptíveis.
Você é tão lindo”.
Damien era lindo, e mesmo todo o poder que tinha nas mãos jamais extinguiu seu medo.
Victor era ainda mais belo assim, adormecido. Encurvado, Damien deu-lhe um singelo beijo em uma das faces. Afastou-se. Sentou no chão, dobrou os joelhos, escorou a cabeça, e adormeceu.




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sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Próxima postagem... (dia 30/08/2008)

Enquanto a conversa se desenrola no quarto azul de Philip Dungeon, Damien explora os cantos do quarto onde dorme Victor Kopperden durante sua vigília. O que pode ser encontrado em tantos cantos escondidos? Descubra no "Capítulo 8 - A gaveta suja".

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Capítulo 7 - Responsabilidade



- Ele mordeu meu pau!
A face angustiada de Philip transparecia a dor que sentia na sua genitália. Mal teve coragem de examinar o ferimento, mas estava certo de que havia marcas dos dentes de Victor na base do seu pênis.
Dyllan adentrara o quarto de Victor onde se encontravam Damien, Yan, Ulysses e Philip, esse último entrando e saindo do banheiro com freqüência, expressando terríveis caretas.
- Trouxe alguns medicamentos para o senhor, Sr. Dungeon – disse o mordomo. - Se o caso for grave posso chamar um médico.
- Se o caso for grave?! – admirou-se Philip, os cabelos loiros e molhados agitando na sua cabeça. – Menino, você já levou uma mordida? No seu próprio p...
- Entendo sua situação, Sr. Dungeon, mas não há mais nada que eu possa f-fazer por você senão chamar um médico.
- Médico o cacete, me dá logo essa sua bolsinha – e arrancou o kit das mãos de Dyllan, se dirigindo ao banheiro e gemendo dolorosamente.
- Quer ajuda? – ofereceu-se Yan.
- Fica aí, grandalhão! – declarou Philip. – Já me basta um pervertido por hoje...
Quando Victor desmaiara na caverna, Philip derrubara-o no chão e correra para a mata, gritando desesperado por ajuda. No lampejar de um relâmpago, o garoto de programa vira num segundo seu falo ensangüentado e sujo de esperma. Em desespero, fez força para vencer a dor e esfregou-o com água da chuva, na esperança de que parasse de sangrar o mais cedo possível. Philip ainda não sabia por que Victor faria algo como aquilo com ele, mas a chuva incessante, os trovões acompanhados de clarões e a ventania fazendo o frio retornar ao seu corpo o fizeram ignorar os supostos motivos para o acidente, se tivesse sido mesmo um fato sem propósito. Vestiu suas roupas novamente, juntou Victor do chão lamacento e jogou seu corpo sobre Thundra. Assim que montou em Makos, o rude cavalo negro, segurou as duas rédeas dos animais e partiu para onde acreditava ser o caminho de volta. Obra do destino ou não, Dyllan apareceu vestindo uma capa de chuva montado em Virgo, apontando uma lanterna para os dois. Após o choque de ver seu patrão desacordado e prostrado daquela forma sobre seu cavalo e ouvir as rápidas e incompreensíveis explicações de Philip, Dyllan guiou-os pelo caminho correto – Philip estava seguindo para o lado exatamente oposto.
Cerca de trinta minutos depois, Dyllan e Philip, acompanhados dos outros três homens – Damien, Yan e Ulysses -, que já se encontravam na casa e devidamente secos, dirigiram-se às pressas ao quarto principal, carregando Victor ainda inconsciente, tropeçando pelas escadas, deixando uma trilha molhada pelo corredor de azulejos e madeira.
Logo colocaram o dono da mansão sobre a cama, Philip dirigiu-se apreensivo ao banheiro, esbravejando palavras inaudíveis, mas de vivo desgosto, em certa raiva deprimida. Dyllan pediu distância aos outros rapazes; estes o obedeceram, posicionando-se próximos à porta. Sem dar atenção às inúmeras perguntas dos atuais visitantes, Dyllan despiu seu patrão e cobriu-o com a colcha da cama. Limpou o sangue e a terra do rosto de Victor com as próprias mãos e saiu do quarto. Menos de um minuto depois estava de volta, sem a capa, oferecendo o kit médico a Philip e carregando outros utensílios numa sacola. Enquanto ele cobria seu patrão com outra colcha de pêlos, duas serviçais entraram no recinto, uma alta e magra e outra baixinha e gorda, sem muita expressão, quase robóticas, com personalidades aparentemente nulas. A mais alta trazia uma maleta de couro branco; a outra, uma chaleira e uma bolsa de borracha sobre uma bandeja de madeira. Feitas as entregas, as duas se retiraram com o destaque que entraram, e Ulysses concluiria, mais tarde, nunca mais tê-las visto pela casa ou qualquer parte do terreno.
Naquele instante, entrementes, Ulysses pôde notar o quanto Dyllan era um bom profissional, mesclando rapidez e eficiência quando o tema era seu patrão. O menino, no estado em que estava, completamente molhado, de respiração inconstante e olhos vermelhos, abriu a mala no chão e a estudou por alguns instantes. Levantou-se, e encheu a bolsa de borracha com água quente, colocando-a entre as colchas sobre os pés de Victor. Com mãos ágeis, levantou a cabeça de Victor e espalhou uma toalha clara sobre o travesseiro. Em seguida, penteou os cabelos encharcados de seu patrão inconsciente para trás, e com lenços de pano limpou por completo o rosto, o pescoço e o peito de Victor, secando-o. Cobriu-o novamente. Conferiu o pulso, as pálpebras, à princípio normais, como se estivesse dormindo. Investigou possíveis hematomas, desconfiando em última instância da conduta de Philip, mas nada encontrou a não ser o corte na testa daquela manhã, já melhor cicatrizado. Com uma luva, abriu a boca de Victor e limpou o máximo de sangue que pôde, apertando os olhos para conferir se ela apresentava também qualquer tipo de ferimento.
Por fim, Dyllan direcionou a atenção no rosto de seu patrão, fixando seus olhos castanhos na inexpressividade de Victor, desfalecido em candura.
- Não há nada mesmo que possamos fazer? – perguntou Yan, aflito, com receio de parecer impertinente.
Dyllan demorou-se mais alguns instantes na sua observação do enfermo, na afilada esperança de que ele acordasse, são. Ergueu-se, ainda olhando para Victor.
- Sr. Dungeon, está tudo bem com o senhor? – exclamou Dyllan.
Philip saiu do quarto enrolado numa das toalhas, com expressão dolorida.
- Podia estar melhor. Eu só preciso de um banho e das minhas coisas.
- Pois bem – continuou Dyllan -, então vocês todos podem sair, não preciso da sua ajuda.
Philip saiu às pressas em direção ao seu quarto. Um tanto abalados, Ulysses e Yan retiraram-se em seguida.
- Sr. Dam... digo, senhor... p-perdoe-me, eu não me lembro do seu segundo nome, senhor.
Damien permanecera no quarto. Seus olhos misteriosos, verde em meio ao castanho, perdiam-se na cena, como se a admirasse.
- Você não lembra porque eu não disse – respondeu ele, categórico e tranqüilo.
Dyllan aguardou alguns segundos como se esperasse uma resposta mais objetiva, mas sua espera foi infrutífera. Tentou ignorar a situação constrangedora.
- Por que permanece aqui... senhor?
- Eu quero ajudar.
Dyllan não conseguiu mostrar nenhuma reação. A boa intenção do rapaz chamado Damien – somente Damien – o petrificou. Assim que a realidade dos fatos retornou ao seu campo mental, Dyllan constatou que podia aproveitar-se da motivação inesperada daquele jovem visitante.
- Bem... – começou, pegando uma toalha da maleta e derramando água da chaleira sobre ela. – Eu preciso checar se o Sr. Dungeon precisa de mais alguma coisa. Se você puder ficar aqui, observando o Sr. Kopperden enquanto eu não estiver presente, ficarei agradecido.









Novamente Dyllan aguardou alguma resposta do rapaz, mas Damien se mostrou tão inerte de reações quanto antes.
- Apenas mantenha esta toalha sobre a testa dele, desse modo – mostrou, apertando levemente a toalha úmida dobrada sobre a fronte de Victor. – Assim que a toalha se resfriar, derrame um pouco mais de água sobre ela, mas apenas um pouco para não esquentá-la demais. E não faça isso com a toalha em sua testa, ou pode acontecer algo pior. Retire a toalha e coloque-a na vasilha para molhá-la.
Damien, então, caminhou vagaroso até a cama, sentou-se na borda do colchão e apertou de leve a toalha sobre a testa de Victor, e assim permaneceu até Dyllan sair.
Mais tranqüilo agora que o estresse passara, Dyllan caminhou alguns metros pelo corredor que fazia uma curva à esquerda, circundando a sala principal, até o quarto de Philip, o terceiro depois do de Victor. Pensando em suas tarefas, abriu a porta do quarto sem bater, e flagrou Philip completamente nu de costas para ele, de cabeça baixa, como se examinasse os ferimentos. Ambos se assustaram, e Dyllan deu-lhe às costas até que Philip arranjasse algo para cobrir-se.
- Garoto, eu achei que você fosse educado. Não sabe bater? Hehe...
Philip tapou-se com o mesmo roupão usado pela manhã, que ficava justo nos seus ombros largos.
- Já pode virar, menino Dyllan.
O mordomo então encarou Philip, agora devidamente coberto, e fechou a porta.
Os quartos de hóspedes da mansão Kopperden lembravam muito os quartos de hotel americanos: cama, estante, televisão, armário, banheiro. Apesar de rústico, um leve toque de modernidade nos móveis e na decoração dava um ar estilístico ao recinto. Philip ficara com o quarto azulado, e tudo que nele se encontrava era da mesma cor, os cobertores e abajures destoando para o verde claro e escuro.
- Por que sua mala está aberta, Sr. Dungeon? – perguntou Dyllan ao ver uma mala de viagens com algumas roupas jogadas dentro.
- Eu tô indo embora – disse Philip, sério.
- E-embora... como assim?! – questionou Dyllan, aturdido.
- É lógico! O teu patrãozinho é doido! Puta merda, o cara mordeu meu pau!
Dyllan baixou a cabeça visivelmente constrangido. Philip estava fora de si, despertando certo medo com sua musculatura e seu queixo quadrado, lembrando um militar expressando sua insatisfação com seus subordinados.
- E para onde o senhor vai? – perguntou Dyllan, tentando manter a calma.
- Pra qualquer lugar, algum lugar em que o teu patrão não me encontre! Nunca mais ponho os pés aqui!
Dyllan postou-se antecipadamente na frente da porta; não podia deixá-lo ir embora sem o consentimento do Sr. Victor. Tentou pensar em algum motivo para convencê-lo a ficar, mas nada muito elaborado lhe vinha à mente.
- O ferimento é sério? – perguntou Dyllan, desviando o assunto, como um enfermeiro profissional perguntaria.
- Nada que uns três dias não resolvam. Mas dói, dói bastante. Chega a arder.
- Precisa de pontos?
- Cala a boca! Nem em sonho que eu ia atravessar agulhas no meu pau.
Dyllan abaixou a cabeça, ruborizado, ainda constrangido pelo linguajar de Philip.
- Desculpa, amigo. Ele não está em seu estado perfeito, mas não é pra tanto. Vai melhorar.
O silêncio abateu-se no quarto, somente a chuva incessante fazendo-se ouvir do lado de fora e Philip jogando suas últimas peças na mochila.
- Cara, por que ele fez aquilo? – perguntou Philip, mais para si do que para Dyllan.
- Sr. Dungeon, o Sr. Kopperden teve uma crise de hipotermia, foi o que pude constatar até agora.
- Hum, não sei se é bem isso, meninão. Ele tava bem estranho... nervosinho. Por que ele me mordeu?
- Ele estava ansioso?
- Mais pra afoito.
- Em que sentido?
- No pior deles – disse Philip, relevante. – Afinal, qual o problema dele? Isso não pode ser normal, essa... sede que ele tem...
- Eu sei – admitiu Dyllan, encarando-se no espelho, saindo da frente da porta involuntariamente. Seu rosto magro estava mais pálido do que normalmente era, os cabelos grudados na testa, a roupa molhada colada ao corpo.
- Sabe? Sabe o quê?
Dyllan pensou até mesmo em não responder, mas uma inexplicável necessidade de desabafo se abateu sobre ele; precisava, também, nutrir o interesse de Philip pela conversa: era seu dever mantê-lo na casa.
- Foi culpa minha – disse, por fim.
- Peraí, peraí... Não tô entendendo nada – falou Philip agitado, sentando-se nos pés da cama. – Sentaí e explica direito.
Dyllan permaneceu em pé, mas desviou a atenção do espelho. Seu rosto acusava sua irresponsabilidade, tanto em sua falha quanto em estar falando neste assunto para aquele homem que ainda não conquistara cem por cento da sua confiança.
- O Sr. Victor precisa de medicamentos todos os dias – começou Dyllan, sua voz mansa porém amedrontada. – São apenas dois comprimidos, mas que se não forem tomados todos os dias podem causar situações como essa que passou.
- Que tipos de medicamentos ele toma?
- Eu... Eu esqueci de dá-los para o Sr. Victor hoje de manhã. Fiquei preocupado em s-servir o café, e depois mais preocupado ainda com o machucado em sua testa que nem lembrei...
- Ei, Dyllan, põe os pensamentos em ordem. Que tipo de remédios são esses? Por que é que ele toma esses remédios, que problema ele tem?
Dyllan calou-se, e Philip pôde notar que seus olhos castanhos tornaram-se marejados. O mordomo, após um breve silêncio, sentou-se ao lado de Philip e olhou fundo em seus olhos verdes e curiosos.
- Você precisa ficar. Por favor.
Philip não sabia o que dizer. Desviou o olhar e levantou-se, andando até a janela. Lá fora o tempo estava caótico, as árvores da floresta à sua direita balançavam frenéticas em todas as direções, os trovões rasgando os céus ao fundo.
- De quem é aquela casa?
- O que? – disse Dyllan, disperso.
- Lá na frente, do outro lado da estrada. De quem é?
Dyllan dirigiu-se à janela e enxergou a mansão pela luminosidade dos relâmpagos.
- É a mansão do Sr. Corris, um grande amigo do Sr. Kopperden.
Philip refletiu por um momento.
- Amizade colorida?
- Os dois são amigos de infância, respeitabilíssimos. Pondere suas palavras para com os dois.
- Tudo bem. De agora em diante tratarei melhor as “excelências”... – satirizou.
Dyllan aguardou mais um instante, e buscou o tempo apropriado para inquirir.
- O senhor ficará?
Philip respirou fundo e deu de ombros, torcendo a boca numa infelicidade cômica agora que sua ira desaparecera.
- Mesmo que eu quisesse ir embora, pra onde eu iria com o mundo desabando? Eu fico... mas vou fechar bem o meu zíper na frente do teu patrão. Tô de olho nele.
Dyllan agradeceu com um sorriso sincero. Pegou a mala no chão e a pôs sobre a cama, para facilitar o trabalho de Philip ao recolocar as roupas no armário.
- Se não for pedir demais – disse Dyllan -, não comente nada com os outros. Eu não deveria ter falado nada, para começar.
- Minha boca tá fechada. Só meus olhos tão abertos – e piscou para o mordomo.
Dyllan sorriu mais uma vez e se dirigiu para a saída. Ao abrir a porta, cambaleou para trás, tropeçando. Não esperava encontrar ninguém no corredor, muito menos alguém daquele tamanho.
Yan estava parado à sua frente. Escutara, certamente, tudo o que foi dito no quarto azul. Lá fora, o vento soprava agressivo, os clarões permanecendo inflexíveis e ininterruptos.




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domingo, 17 de agosto de 2008

Próxima postagem... (dia 19/08/2008)


Mesmo com o intuito de prender seus desejos, Victor cede mais uma vez e acaba cometendo uma loucura em meio à floresta, na escuridão preenchida pela tempestade, na claridade de uma fraca fogueira em uma caverna. Qual a reação de Philip, Dyllan, dos outros garotos, e do próprio Victor? Descubra no "Capítulo 7 - Responsabilidade".

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Capítulo 6 - Decidindo soluções




Bateu a testa no pé do seu criado-mudo ao cair com estrondo sobre o tapete ao lado de sua cama. Victor estava encharcado de suor, seu coração batendo acelerado. Encontrava-se nu, as costas para cima. Ouviu alguém desligando o chuveiro do seu banheiro; agora que reparara que ele estava ligado.
Yan surgiu na porta do banheiro, o corpo todo molhado, colocando a cabeça e seu denso cabelo para fora, pingando água morna no piso envernizado.
- Pobrezinho! – exclamou ele. – Caiu da cama, chefe?
Victor ainda não raciocinava direito. Aos trancos, sentou-se na cama e descansou a cabeça nas mãos. Fora um sonho, um dos mais bizarros que já tivera.
Yan voltou para dentro do banheiro e retornou parcialmente seco, esfregando a toalha branca pela cintura. Sentou-se na cama também, ainda se secando, mas Victor levantara-se. Repentinamente teve um impulso de averiguar o interior do seu toalete, e partiu apressado. O ambiente estava como regularmente estaria, a não ser pela quantidade de vapor desaparecendo aos poucos enquanto saía para o quarto. Ninguém se encontrava ali.
- O que aconteceu, chefe? – perguntou Yan, enquanto Victor voltava devagar.
- Isso... isso não podia ter acontecido...
- Acontecido o que, chefe? Olha, se isso tem alguma coisa a ver com a noite passada, tudo bem. Eu posso ser ativo na próxima vez sem maiores problemas...
Victor pensou que explodiria em excitação desvairada.
- Cala a boca! – berrou. – Fica quieto! Pára de falar.
Yan congelou por alguns instantes. Não soube o que dizer sem soar agressivo para Victor naquele estado.
- Você está sangrando, chefe. Sua cabeça.
Victor passou a mão no lugar da batida. De fato havia um corte leve acima do olho direito.
Yan levantou, juntou sua cueca usada, enrolou um roupão avulso no guarda-roupa ao lado da porta e partiu após dizer:
- Encontro você na mesa para o café, chefe.
Victor permaneceu no mesmo lugar por um minuto ou dois. Pegou dois ou três lenços umedecidos da estante e pressionou na ferida.
“O que está acontecendo? Que pesadelo foi esse? Foi algum tipo de premonição? Não pode ter sido simples descarrego de lixo cerebral, nada daquilo era lixo... talvez eu fosse, eu e meus pensamentos incoerentes que não me libertam nem em sonho”.
Os minutos seguintes foram preenchidos com um banho rápido, meias limpas, roupão macio e olhares perdidos além das montanhas no oeste, através da imensa janela do gigantesco quarto. Apressou-se na escadaria circular no fim do corredor, quase caindo nos degraus finais. Chegou na sala de jantar pouco antes de Yan entrar pela outra porta, no canto oposto que ligava à sala principal. Deu bom-dia a todos, e Yan também. Os dois se sentaram nos mesmos lugares da noite passada, trocando olhares sérios e comprometedores. Ulysses, assim como Damien e Philip, vestia um roupão similar ao de Yan, impecavelmente branco.
- Teve uma boa noite, Victor? – Ulysses perguntou, servindo-se de chá e bolinhos.
- Não, querido, não tive, mas obrigado pela preocupação. Não foi das mais relaxantes – e sorriu, sentindo o olhar de Yan queimar em sua fronte, mesmo sem encará-lo.
- Bom-dia, Sr. Kopperden – cumprimentou Dyllan, entrando na sala por onde Victor viera, com uma bandeja segurando uma xícara azul. – Aqui está seu café, senhor.
Victor olhou fundo através das pupilas do mordomo.
- Dyllan – disse ele.
Dyllan não soube como reagir, e balançou a cabeça afirmativamente. Victor pareceu sair do seu transe.
- Café? – surpreendeu-se, inalando o cheiro característico. – Por que café?
- O-ontem o senhor disse que passaria a tomar café ao invés de chá – respondeu o mordomo, sem compreender seu patrão.
- Eu disse?
- Se bem me lembro, sim, senhor.
- Tudo bem, Dyllan, obrigado – finalizou Victor, retirando os cabelos do rosto.
- Sr. Kopperden, o senhor se machucou?! – exclamou Dyllan, aturdido. Os outros lançaram os olhos para o curativo simplório na testa de Victor, e esse puxou de volta os fios loiros tampando o ferimento.
- Um pequeno acidente, Dyllan, está tudo bem, obrigado.
Dyllan postou-se em seu lugar, intrigadíssimo, e o silêncio reinou por alguns minutos. Olhares sonolentos trocavam-se entre todos, exceto Victor, que mantinha a cabeça baixa, tomando seu café.
Em meio a conversas esporádicas, Philip foi quem despertou a atenção de Victor.
- Yan, por que tem um “K” no seu roupão? – indagara ele.
Yan remexeu na cadeira e esticou o tecido até enxergar o “K” costurado no peito.
- Não faço idéia. Não tem no de vocês?
Os demais roupões eram inteiramente brancos, sem costura ou estampa. Philip sorria, atrevido.
- No nosso não. No do seu chefe, sim.
Foi então que Victor descolou sua vista do “K” nas vestes de Yan e virou-se para Philip, que agora ria para ele.
- Ah, qual é! – exclamou Philip, parecendo mais adolescente que Damien. - Lógico que ele passou a noite com você. Ei, “Vivi”, desse jeito não tem como descansar mesmo.
Victor engoliu em seco, procurando as palavras no sorriso debochado de Philip.
- Isso, como eu disse anteriormente ao próprio Yan, não deveria ter acontecido.
- E por que não? – insistiu Philip.
- Não foi assim que eu imaginei que fosse, saiu fora do planejado.
- Ontem você disse que não tinha planejado quase nada.
- Praticamente nada, mas isso que aconteceu afeta a base, vai contra as minhas intenções primordiais.
Philip manteve a boca fechada, mastigando um biscoito de açúcar, o sorriso oculto pelos movimentos da sua mandíbula.
- Não tem nada a ver com você, Yan – explicou-se Victor, pegando a mão do homem à sua esquerda. – Não era o modo como eu queria que as coisas acontecessem, é simples assim.
Damien engoliu seu iogurte e resolveu se expressar.
- E como você quer que aconteça? Você é sempre tão vago.
Victor admirou-se com a inocente audácia do garoto.
- A longo prazo, você está certo, tenho vaga idéia de como as coisas vão se seguir. Dos meus desejos fundamentais acredito que todos vocês estão cientes. Quanto a respostas breves, o que quero para agora, para hoje, é um passeio pelos arredores da casa, pelos lugares dos quais falei ontem. Dyllan?
- Sim, Sr. Kopperden?
- Diga para Celline preparar Thundra, Makos, Ingus e Emew, e escolher outro para um dos rapazes, menos Wogon.
- Para quando, senhor?
- Para o início da tarde, se possível. O tempo está bom, mas nunca se sabe o que pode acontecer por essas bandas.
- Certo, posso recolher a mesa?
- Deve, Dyllan.
O resto da manhã e o almoço foram recheados de conversas banais e perguntas sobre quem eram Celline e as supostas criaturas de alguma mitologia desconhecida citadas por Victor. Por mais suplicantes que fossem, os garotos só conseguiram pedidos de paciência por parte de Victor, o que os deixou ainda mais entusiasmados. Até Yan, como Victor pôde perceber, estava curioso e bem-humorado, deixando o anfitrião mais tranqüilo quanto ao misterioso passeio vespertino.
Por volta das catorze horas, os quatro rapazes, guiados por Victor, caminharam alguns metros saindo dos fundos do casarão até um casebre de pedra cercado por árvores que davam início a uma densa floresta em toda a área sul dos terrenos da família Kopperden. Olhando da mansão, podia-se ver que as árvores só terminavam ao encontrar as colinas, onde apenas se elevavam ou mostravam-se em outras espécies.
Pouco antes de chegarem ao casebre, Victor aproximou-se sorrateiro até Yan e puxou-lhe de leve pelo braço.
- Yan, você está melhor? – perguntou-lhe baixinho, querendo parecer solidário.
- Sim, estou – respondeu Yan, suspirando. - Apenas fiquei assustado de manhã, mas já passou a crise, não?
- Yan, não foi uma crise. Foi... – “O que estou tentando dizer?” – Ok. Se você pensar assim, ótimo. Foi uma crise momentânea. É que eu tive um sonho absurdo, acordei com medo.
- Nossa, e como foi o sonho?
- Ah, Yan, foi tão desagradável que não vale a pena ser contado. Esqueça isso.
Os dois seguiram os outros homens que já entravam na casa de pedra. Victor não pôde suportar.
- Yan, quando você tomou banho... estava tudo no lugar? Digo, você está inteiro?
O rapaz abriu seu sorriso encantador, e respondeu com carinho:
- Certo, foi um estrondo, mas pra me destruir é preciso muito mais. Da cabeça aos pés, dois metros e um - só para você, chefe.
Com uma piscadela, Yan puxou Victor para fora do campo de visão de quem estivesse dentro do casebre, mas Victor afastou a cabeça a tempo de evitar um beijo desnecessário.
- É melhor não, Yan – disse ele, resistindo à tentação dos lábios firmes do rapaz. – Por favor.
- Sem problemas, desculpe.
Os dois então entraram no estabelecimento. Yan percebeu no mesmo instante se tratar de um celeiro, onde cerca de vinte eqüinos encontravam-se cercados por pequenas muretas, cada um com cerca de dez metros quadrados de terra e palha para ocupar. Além dos quatro convidados e de Victor, Dyllan e uma bela mulher negra achavam-se próximos a seis cavalos fortes, três marrons, dois pretos e um branco. Um dos cavalos pretos ainda estava sem sela, e a moça aprumou-se ligeira para amarrar e prender todos os cintos ao redor do esbelto cavalo negro.
- Boa tarde! Todos bem, Celline? – cumprimentou Victor.
- Sr. Kopperden, nem pergunta de mim antes! – retrucou a moça, aparentemente ofendida.
- Ah, claro, vocês todos estão bem? Isso inclui você, Celline.
A mulher desatou a gargalhar enquanto secava o suor da testa com as mangas do macacão. Celline, como Dyllan viera a explicar depois, era uma antiga empregada da família Kopperden que se mudara com o pai ainda menina na vizinhança. Quando seu pai morreu mordido por uma cobra durante uma pescaria, o Sr. Anthon Kopperden, pai de Victor, apiedou-se da menina e deu a ela tudo que precisava: estudo, alimento, moradia e carinho. Ela crescera correndo pelos vastos campos, desbravando a floresta sempre que podia, às vezes até se perdendo por seus atalhos. Os anos se passaram, e quando o velho Norman, antigo empregado que cuidava das fazendas da redondeza, viera a falecer, Celline já estava mais que instruída a ocupar o cargo de confiança e o trabalho duro junto aos veterinários que faziam visitas constantes aos animais. Hoje em dia, ela cuidava exclusivamente dos cavalos, éguas e dos cachorros que faziam a vigília dos arredores do terreno dos Kopperden. Celline tinha em média trinta anos, e era tão forte como um homem trabalhador comum. Sua voz era firme, todavia tinha temperamento brando, e lembrava a Yan uma tia faceira que há muito não via.
- Sejam bem-vindos, rapazes – falou ela, baixando a cabeça levemente. – Escolham o que mais lhes agradar, exceto Virgo, que é do nosso Dyllan – e esfregou a mão no mais belo alazão à esquerda dela.
Yan e Damien escolheram os outros cavalos cor de canela – Ingus e Emew, respectivamente – e Philip e Ulysses montaram nos outros dois animais negros, Makos e Lylo. Ulysses mostrou grande habilidade na montaria, e logo disparou para fora, dando um giro completo e empinando o cavalo com força, um verdadeiro cavaleiro de chapéu e tudo o mais. Victor aproximou-se do seu cavalo, Thundra, um deslumbrante eqüino com seu pêlo branco bem escovado e perfumado, diferente dos outros pela pequena máscara que o distinguia: esse era o cavalo do Sr. G. Kopperden.
Celline dera as últimas verificadas em Thundra enquanto os rapazes saíam do celeiro.
- Pensa em ir muito longe, patrão? – perguntou Celline, concentrada em amarrar firme a sela do cavalo imponente.
- Não muito, o suficiente para eles conhecerem o que tem de bom por aqui.
- Certo. É bom não se distanciar muito, Thundra está um pouco ansioso, isso é sinal de tempo ruim.
- Com este sol?
- Pois é, mas sabe como é verão. É início da estação, o clima muda de uma hora pra outra. É só um conselho, não vá muito longe para poder voltar depressa se precisar.
- Se Celline diz, o pequeno Victor faz.
- Você é maior do que imagina, amigão. Nunca pense o contrário.
Victor sorriu com afeto para a amiga de infância e bateu os pés de leve nas laterais do seu cavalo. Lá fora, Ulysses retornava para junto do grupo.
- Adorei esse daqui – disse ele.
- Lylo normalmente é arredio – informou Victor -, mas parece ter gostado de você.
- Victor... – começou Damien, numa postura exemplar em cima de Emew. – E se por acaso eu não quisesse andar a cavalo?
- Você não quer?
- Não é isso, é uma hipótese.
- Agora é você quem está sendo vago, onde você quer chegar?
- Lugar nenhum. Deixa pra lá, são coisas minhas.
Victor tentava, mas longe estava de chegar a uma conclusão coerente sobre o que se passava na cabeça daquele garoto.
- Se preferir pode ficar em casa, tem muita coisa pra fazer lá também. Seria interessante se todos fôssemos.
- Para onde seguimos, Sr. Kopperden? – questionou Dyllan, dando um ponto final à conversa.
- Deixo o papel de guia para você, Dyllan, mas sugiro a cachoeira.
- Não é muito longe?
- Ah, ninguém está com pressa aqui. Afinal, esses cavalos precisam de exercícios; Celline está preocupada com o ânimo dos pobres bichos.
Ninguém comentou nada durante um tempo, enquanto uma brisa confortável sacudia as vestes e os cabelos de todos. Atrás deles, a imensa floresta aparentemente não desbravada, mostrando vida através do balanço. Foi na direção da mesma floresta que Dyllan guiou Virgo.
- Vamos, Lylo! – ordenou Ulysses, e o animal partiu veloz ultrapassando a todos, inclusive Virgo.
Logo a impressão de abandono daquela região se desfez, e os seis cavalos iniciaram a pequena jornada por uma estrada de terra sob a sombra das árvores. Os primeiros quilômetros seguiram-se com tranqüilidade, Victor reparando no suposto amedrontamento de Damien e numa inesperada introspecção de Philip que, galopando com Makos ao seu lado, dirigia-lhe olhares furtivos.
“Furtivos, dispersos, perdidos, focados, límpidos, doces, lacrimejantes, iluminados... que olhos os dele, e de todos os outros. Como estarão os meus? Fechados. Fechados a essas impressões errôneas. Estupidez achar que bloquearei meus pensamentos absurdos tampando minha visão. Eu vejo com meus sentidos, no toque, na visão, ouvindo, cheirando, provando, com o sexto, sétimo, décimo sentido, múltiplos sentidos. Mistura sórdida, sempre sórdida, tendendo a continuar até se tornar perpétuo e irreversível. Sensitivo e insensível ao mesmo tempo”.
Dyllan liderava a trupe, Ulysses cavalgando ao lado, apontando para tudo que lhe lembrasse sua terra natal. Yan mantinha-se levemente afastado, mas Victor tinha certeza de que não tardaria e ele seria o mesmo Yan que entrara em sua mansão no dia anterior.
A trilha foi ficando escorregadia e lamacenta após uma hora de passeio. A umidade não chegava a ser um transtorno, mas era sentida no toque dos arreios e nos fios de cabelo que se tornavam quebradiços e disformes. Victor suava sobre o lombo de Thundra, o calor na parte interna das coxas incomodando insistentemente. Ao redor, o que se podia perceber além das árvores revoltadas como se brigassem com o ar da ventania eram grandes pedregulhos deslocados, aleatoriamente localizados no meio dos arbustos e ervas pegajosas. Dyllan aproximou-se com o alazão Virgo, com perfeita postura digna de um cavaleiro.
- Tudo bem com o senhor, Sr. Kopperden? – perguntou ele de voz tímida e embargada. Victor levou certo tempo para perceber a presença do mordomo e a processar suas palavras gentis.
- Comigo? Sim, estou bem, apenas cansado. “Entediado, talvez”.
- Sua cabeça está doendo? – apontou Dyllan para o curativo escondido por mechas díspares na testa de Victor.
- Nem um pouco. Obrigado, Dyllan.
Aos poucos foi escurecendo, tão rápido que Victor questionou-se se deveriam mesmo chegar até o lago. Thundra tremia mais que o normal. Não devia passar de três e meia da tarde, e mesmo assim a iluminação sob as árvores tornava-se mais sombria a cada cem metros que avançavam. Todos sentiam certo frio, e Damien já fechara seu casaco até o queixo. Um infeliz arrependimento bateu no peito de Victor. Mais um dos seus impulsos não planejados, essa longa cavalgada sem rumo.
“Algo tem rumo em minhas troteadas pela vida?”.
Ao descerem um declive, Lylo, o cavalo de Ulysses, começou a relinchar e bater os cascos no chão terroso com nervosismo. Tamanho era seu espanto que, se Ulysses não fosse um experiente montador, poderia muito bem ter caído das costas de Lylo, que não parecia ter o mesmo senso de premonição de Thundra, que apenas ficava nervoso em clima úmido mostrando seu desgosto por climas variáveis.
- Victor, acho melhor levá-lo de volta – sugeriu Dyllan.
- Ótimo – expressou Ulysses -, você leva ele e eu fico com o seu, posso?
- Jamais, Sr. Loyola – decretou Dyllan, que mesmo sem rispidez deixou claro sua autoridade sobre seu animal de estimação.
- Hum, certo. Posso seguir com você, Victor?
“Esse sentimento vem e vai. Por que não pára?”.
- Também não – impôs Dyllan, calmo acima de tudo. – Um cavalo como Thundra tolera um peso limitado, e dois na garupa em tamanha distância pode prejudicar a saúde dele. É o cavalo do Sr. Kopperden. Você vem comigo. Consegue controlá-lo?
- Acho que sim, meu pulso é firme.
- Certamente. Siga-me. Com sua licença, Sr. Kopperden.
Victor manteve silêncio. Não contestara as palavras de Dyllan porque eram, de fato, verdades, e devido ao seu longo relacionamento com Dyllan pouco levara em consideração o tom gélido de suas determinações. Dyllan pegou as rédeas de Lylo e partiu com Ulysses.
- Victor – falou Damien -, eu acho que vou com eles. Estou com frio.
- Você não costuma patinar? – observou Victor.
- Estou cansado, minhas... nádegas doem.
Damien enrubeceu de leve, e Victor não pôde fazer nada a não ser deixá-lo ir, sinalizando com a cabeça. Em menos de um minuto, Dyllan, Ulysses e Damien perderam-se nas sombras verdes da floresta. Yan e Philip continuaram seguindo Victor até a cachoeira.
- Acho que vou voltar também, chefe – disse Yan quebrando o silêncio passados alguns minutos.
- Oh, tudo bem, Sr. Hick – lamentou Victor. – Nos vemos no jantar?
- Com toda certeza, chefe.
- Pare de me chamar de chefe – pediu Victor informalmente, ao que Yan retribuiu com o já conhecido sorriso de menino levado, partindo em seguida a forte galope.
Restavam ele e Philip, agora troteando devagar como dois exploradores. Na mata fechada, tudo que se ouvia eram o respirar dos cavalos e suas ferraduras chocando-se com algumas pedras soltas da nova estradinha.
“Por que...?”.
- Foram todos embora, não é justo... – lamentava-se Victor.
- Vai chover, é isso – concluiu Philip.
- O que? O Sr. Dungeon também prevê o tempo?
- Ninguém precisa prever nada pra sentir. Esse vento... Mesmo no meio de uma floresta dá pra notar. É chuva. Mas eu ainda não fui embora, não.
“Solução. Preciso resolver. Até quando?”.
Uma gota de suor frio desceu pela testa de Victor. A chuva traz frio, e o frio, desconforto. Para onde ir?
- Me siga. Há alguns nichos bem espaçosos nessas rochas, podemos conseguir abrigo.
Ambos partiram com Thundra e Makos, mas o banho de chuva foi inevitável. Das nuvens despencaram grossas e pesadas gotas d’água, tornando o terreno lamacento em questão de instantes. Levaram certo tempo até encontrar uma pequena caverna no meio da tempestade e da ventania. Logo ao entrarem, desmontaram dos cavalos e os colocaram próximos da saída, protegidos da água. Enquanto Philip despia a camiseta e tratava de torcê-la, Victor, na sua experiência de explorador dos próprios campos, acendia uma fogueira na base da habilidade e da sorte: galhos secos se encontravam amontoados em um canto, talvez restos de uma antiga visita de Celline.
O que Victor não previra, além do trajeto do passeio, era ver Philip completamente ensopado, pendurando suas roupas sobre as pedras. A medida que ele retirava as calças, Victor fechava os olhos, apertava-os dentro da cabeça. Pensou em pôr um dedo no fogo para desviar a atenção. Definitivamente, aquela não era a solução.
- Qual dos cavalos era Wogon? – perguntou Philip. – Você falou nesse nome na mesa do café.
- Que boa memória você tem, rapaz. Wogon é um cavalo especial. Ninguém monta nele. Ele tem um compartimento reservado, recebe cuidados especiais.
Victor respondeu à Philip batendo os dentes, tremendo-se por completo. A fogueira não parecia aquecer.
- Hei, patrão, melhor torcer suas roupas também – falou Philip, quase despido por completo. – Sem estresse, é por causa de resfriado mesmo.
“Insistência maldita...”.
- Sem problemas, cara – dizia Philip, retirando a força o casaco e a camiseta de um Victor encharcado. – Eu ouvi o que você disse lá na mansão, não se preocupa. Eu entendi.
Philip tirou o resto da roupa de Victor, que parecia ter entrado em estado mórbido, olhar desatento, mudando constantemente de direção.
- Uma vez vi num filme, aquele que o mundo vira gelo, já viu? Vi que o calor humano “é o mais poderoso de todos”, que é bom mesmo. Se não for ruim pra você...
Victor não prestara real atenção, e quando deu por si estava envolvido pelos braços do loiro latino. Calor. Calor humano. Calor dele.
“Calor de homem”.
Calor. Conforto.
“Foda-se”.
- Foda-se – soltou Victor.
- Que?
- Foda-se o que eu disse, me deixa.
Philip estava claramente confuso, mesmo que seu rosto estivesse mal iluminado pela luz fraca do fogo. Foi essa luz fraca, entretanto, que permitiu a Victor a visão sexualmente destrutiva de Philip, digno de um muso inspirador para qualquer artista, vestindo somente uma cueca clara que, molhada por completo, lhe deixava transparente na frente, atrás e nas laterais.
- Lhe deixar? O que?
- Eu quero chupar você.
- Como assim? Eu nem tô excitado, Victor. Assim não rola.
- Não me contrarie – dizia Victor, olhar desfocado dirigido ao relevo sobre a cueca. – E que fique registrado, nunca mais me chame de “Vivi”.
Por mais que Philip buscasse fugir, o espaço limitado da caverna não lhe deu alternativa. Victor lhe abocanhara entre as pernas naquele estado mesmo, frio, mole, sem tesão algum. Tamanha sua vontade em excitá-lo fez Philip perder o controle mais cedo do que o rapaz pensava ser capaz. Bastaram alguns movimentos com a língua para Victor sentir o pênis rígido dentro da boca, que quente como estava aquecia o resto de todo o corpo, muito mais que um abraço, já esquecido por Victor.
- Se vai fazer, faz com vontade – balbuciou Philip, agarrando com força os cabelos molhados de Victor e forçando a garganta dele. Segurava-o com uma mão, com as duas, em ritmo violento. De vez em quando, retirava o membro da boca de Victor batia-lhe no rosto como se quisesse machucá-lo, para depois colocar tudo até o final naquela boca morna que sugava tão bem.
Era daquilo que Victor precisava: um pênis para chupar. Exatamente nessas palavras, um pênis para chupar. Sentir prazer ao dar prazer para um homem bastava para Victor. Era a cura para a doença dos seus delírios, da sua imaginação, de suas fantasias que há tempos não eram mais íntimas a ninguém, nem à própria natureza, que fez de Victor Kopperden quem ele era, imperfeito. A glande, o suco leitoso, os nervos, veias, os pêlos perdendo-se na língua, língua que passeava pelos testículos, o gosto salgado da água transformada em suor, do acúmulo de saliva à inundação do líquido branco e amargo, o éter necessário, sempre necessário. Gozo. Tudo fazia parte do ritual, onde Victor era o participante humano, o objeto, o atuante, o plano e a execução.
Philip batera a cabeça na parede rochosa ao ejacular, perdendo a noção dos sentidos, contorcendo-se por completo, esfregando suas costas na parede de pedra pura. Nunca havia sentido tanto delírio em algo tão simples como sexo oral feito por um gay afoito.
O prazer, porém, transformara-se em dor. A dor, porém, não vinha da cabeça, vinha do seu membro ainda rígido. Horrível dor, dor que talvez sangrasse. Sangue? Sim, pensou que fosse, quando se deu conta que de fato era.
Victor amolecera, seus braços soltos e relaxados, ajoelhado, olhos fechados, sua boca ensangüentada entalada com o pênis de Philip. Ardência e medo.
Victor estava desacordado.



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