Logo que Dyllan retirou-se do quarto, Damien permaneceu observando Victor por alguns instantes, como se tentasse compreendê-lo por completo através da sua respiração. Quando a toalha branca pareceu esfriar, Damien retirou-a da testa do enfermo e fez como Dyllan dissera, colocando-a na vasilha ao lado da cama e molhando-a na água quente da chaleira. Com um cuidado fraternal, repôs a toalha sobre a fronte molhada de Victor, continuando a compressa. Ao que tudo indicava, Victor continuaria adormecido por um tempo considerável, o que deu a Damien privacidade para perambular pelo ambiente.
O dormitório do Sr. Kopperden era visivelmente maior que o de Damien. O teto negro dava a impressão de profundidade, sua altura indefinida. Numa rápida observação, Damien forçou-se a concluir que, apesar de tanta riqueza aparente, a mansão, no geral, era simples, nada de muito extravagante. Os móveis não pesavam no visual, tampouco contrastavam com a arquitetura rústica e moderna ao mesmo tempo, num exotismo nunca visto antes por aquele garoto.
Ao contrário do quarto onde se hospedava, o dormitório de Victor abrangia mais espaço, o que permitia maior disponibilidade de móveis. Apesar disso, nada de muito excêntrico se era possível encontrar, deixando grandes espaços vazios. Pela mente de Damien, era um reflexo da solidão eminente daquele homem. Suas conclusões sobre Victor Kopperden eram poucas e vagas, quase nunca concretas, com brechas para tantas interpretações que o faziam calar e parar para pensar com calma. Quando pensar cansava, fechava os olhos, se retirava, dormia um pouco, lia algum livro grosso ou fazia algum exercício. Eram poucos dias de convivência, de fato, mas dadas as circunstâncias, cada minuto de ingenuidade parecia perdido para Damien.
Já de pé, o garoto caminhou até o guarda-roupa claro, abrindo as duas portas centrais. Localizado próximo à saída para o corredor, o móvel abrigava peças excepcionalmente belas, que certamente custariam o preço de banquetes. Damien retirou algumas peças para observá-las, e não encontrou nenhuma etiqueta que indicasse marcas ou grifes, o que o fez pensar em roupas exclusivas, feitas sob medida, exemplares únicos e estilizados. Recolocando as peças no lugar, constatou, num segundo vislumbre, que o guarda-roupa adentrava a parede, onde outras tantas peças admiráveis se penduravam em hastes de correr. Fechou as portas com um leve estrondo, voltando-se para ver se Victor teria despertado. Como o dono do quarto permanecia de olhos cerrados, Damien seguiu em direção a uma pequena escrivaninha, ao lado do toalete róseo.
Afastando uma cadeira giratória de tecido escuro, Damien ia abrindo as gavetas laterais uma por uma. Na primeira delas, uma quantidade infinita de papéis e documentos a entulhavam, apresentando recortes de jornais antigos, matérias de cinema internacional, um conjunto das mais diversas entrevistas, desde artistas anônimos, famosos deturpados até doutores de renome, tudo espalhado sem contexto algum. A segunda gaveta encontrava-se vazia, um parafuso solto rolando para frente e para trás. Fechou-a, e abriu a de baixo, encontrando uma dúzia de álbuns fotográficos e, à direita, fotos avulsas. Com a consciência da falta de tempo para uma suposta investigação não programada, Damien ignorou os livretos e tirou a pilha solta. Examinando na claridade que os trovões ainda permitiam, pois a luz do quarto encontrava-se fraca dependendo apenas de dois abajures, o garoto notou não se tratarem de fotos, e sim de pinturas. Melhor dizendo: fotografias de pinturas. Em todas, um Victor com os mais diferentes rostos e poses, nunca olhando diretamente na direção do pintor. Em todas elas Victor parecia vestir trapos, roupas ao avesso, lençóis servindo de capas, panos rasgados enrolando seu corpo inteiro. Nada da grife pessoal que se encontrava em seu guarda-roupa. Damien percebeu e questionou-se longamente, por fim, sobre um detalhe característico em todas elas: havia sempre, no rosto de Victor, uma lágrima caindo, visível e brilhante, mesmo que o rosto não expressasse tristeza.
“O anjo que chora os males do mundo”, pensou Damien, colocando a mão bem abaixo das costas, do lado direito do seu corpo. Naquela região, há três anos atrás, Damien imprimira para sempre em sua pele a figura de uma mulher cinzenta, longos cabelos escuros, pequenas asas negras no dorso, chorando lágrimas de sangue. Na época, talvez pelos quinze anos mal completados ou, quase que certamente, por fatores externos a ele próprio, Damien não sabia o porquê daquela figura, e só meses depois que relacionou as coisas umas às outras. Tinha certeza, entretanto, de que deveria carregá-la consigo, era seu destino obtê-la. Damien mudara muito desde então, e suas poucas experiências se converteram em grandes aprendizados.
Era como se fosse hoje, na verdade em um dia como aquele, tempestuoso, violento. Voltando de mais um dos seus trabalhos como modelo publicitário na cidade vizinha, Damien caminhava pelas calçadas de Wakefield em mais uma repugnante volta pra casa. A chuva era intensa, e não o importunava a idéia de encharcar suas meias, seu casaco ou a mochila. Para quem sempre viveu sozinho ou mesmo distante das pessoas ao seu redor, uma situação como aquela não haveria de importar. As coisas eram suas, molhava se quisesse.
Sua casa era, na opinião dos vizinhos, a mais pobre da quadra. Entretanto, se algum deles ousasse um dia entrar nela se depararia com uma ordem raramente vista para um adolescente. A ordem, contudo, era a mínima esperada: a casa se dava por dois compartimentos pequenos, que se dividiam em banheiro e o resto, sala, quarto e cozinha, juntos no compartimento maior. Devido à pequenez do ambiente, a organização era ligeira, os poucos móveis colaborando com o espaço limitado.
Damien largara a mochila sobre a cama, da qual não lembrava a última vez em que nela dormira, e entrara ligeiro embaixo do chuveiro quente. Só tomava banhos escaldantes, gostava da ardência na pele, da vermelhidão no meio do vapor. A ducha moderna destacava-se no banheiro singular, onde duas pessoas não se entenderiam ao mesmo tempo.
Um temor conhecido fez arrepiar seu corpo, que veio de fora e atingiu seus órgãos. Era o medo, inoportuno como sempre.
Apesar da sua idade questionável, Damien não se bastava de simples pensamentos, não se limitava a qualquer perfil popular, nem jamais seria um garoto comum. O fato de seu corpo, esculpido a duras penas dentro do próprio casebre, não apresentar nenhuma defeituosidade aparente só ajudava a criar a ilusão de um adolescente sadio e feliz. Nas costas, a tatuagem recente onde um anjo feminino chora em vermelho, lágrimas despencando até a nádega direita, numa figuração de dor proibida, reprimida.
A água escorria quente, como se fosse fogo líquido percorrendo sua pureza, caindo no pescoço magro, deslizando sobre o peito delineado pintando-o de vermelho, assim como os músculos mais abaixo; água que descia e atravessava a pelagem negra pubiana, água que se dividia e atravessava o membro que sempre enrijecia naquele apalpar solitário; água pura, que caía aos seus pés e escorria ao ralo, em meio aos fios capilares caídos, restos de antigas ejaculações, restos de antigos prazeres sempre solitários. Era costume, e por sua opinião, saudável. Água era vida, seja no vapor do banho, seja congelada nas pistas e lagos que tanto amava patinar, desde que fosse água, sempre seria vida, sua própria vida. A água escaldante lentamente tornava-se suportável, mas ainda doía, queimava. Nada mais estimulante, a única dor que conhecia que podia lhe dar inspiração e prazer. Mão direita, mão esquerda, apertos e esfregações, suspiros e gemidos, rigidez e danças sensuais, de Damien para ele mesmo, alternando ritmos. Milhares de sensações, tudo se resumindo na ânsia do gozo final, pois todo processo era orgástico por si só. Aquele costume, como de tantos outros garotos, se fazia único e intrínseco para Damien, menino de quinze anos físicos, mente de tantos anos mais.
Era felicidade, efêmera, mas era felicidade. Sorriu.
Damien deixou a água quente cair sobre a cabeça por mais alguns instantes, enquanto seus músculos e nervos relaxavam para o próximo serviço. Enrolando-se na toalha, pisou no pano úmido do chão frio e dirigiu-se até a sala, apertando o botão da secretária eletrônica. Enquanto ouvia a mensagem do dia, que quase sempre passavam de três, apontava o queixo para cima alongando o pescoço. Era o sr. Jeffrey Lewis outra vez. Ele não estava em uma semana boa, e seguidamente constava uma mensagem sua na secretária. Vestindo-se com a pouca roupa seca e limpa que ainda tinha ao lado da cama, Damien pegara alguns trocados sempre perdidos nos bolsos das calças e saiu em direção ao hotel da cidade, pensando como seria se colocar no lugar do Sr. Lewis, ou se algum dos seus clientes já tivera, enfim, uma semana suficientemente boa para se contentarem. Sentia medo disso.
A chuva parara, e um vento leve atravessava seus cabelos molhados parecendo acariciar seus pensamentos, uma vez que dependesse de um bom estado de espírito em qualquer um dos seus ofícios. Damien sabia desde a primeira vez que atendeu a um cliente o que eles queriam, mas principalmente conhecia o desejo íntimo guardado dentro dele próprio. O menino deixava claro, a cada primeiro encontro, quais eram seus modos de tratamento, e até onde cada um deles poderia chegar. No caso de uma discordância, Damien se despedia formalmente e voltava para casa, comprando algumas maçãs para passar a noite, quando o serviço era tardio, porém raramente isso acontecia. Preferia por essas horas noturnas, para não passar o resto do dia em casa, deitado na cama, lendo qualquer coisa que o levasse pra longe da sua realidade. Quanto mais longe, quanto mais abertos eram os espaços, quanto mais personagens estranhos e versáteis os textos guardassem, melhor. Era alívio até o sono chegar, apagando por poucas horas as muitas preocupações indevidamente impostas em um homem de quinze anos. Sono que apagava seu medo.
O quarto em que teria o encontro ficava no terceiro andar, e Jeffrey já o esperava recostado no leito, de roupão e pés descalços. Damien o cumprimentou com um piscar de olhos, retirou o moletom e a camiseta e postou-se ao lado da cama.
- Sem cerimônias, Damien, deita aqui – falou Jeffrey docemente, voz embrulhada, como se algo estivesse entalado em sua garganta. O corretor de imóveis era um adulto bastante conservado, a não ser pelas insistentes olheiras. Cabelo escuro, ralo, poucos músculos, sempre mordendo o lábio, seu aspecto aflitivo. Damien o compreendia e o respeitava, e ele pagava melhor que muitos outros.
- Você está cheiroso como sempre, menino – disse Jeffrey, balançando levemente a cabeça, de olhos fechados, enquanto Damien se ajeitava, cobrindo-os e abraçando-o por trás.
As lembranças ainda frescas traziam nostalgia triste e alegre simultaneamente para Damien, agora maior de idade, agora consciente de sua sapiência, agora de pé, mexendo onde talvez não devesse.
Admirou as fotos das pinturas de Victor outra vez e guardou-as na terceira gaveta da escrivaninha. Faltava a última. Ao abri-la, sentiu um forte cheiro de tinta e álcool, irritando suas narinas. Papéis e mais papéis, talvez mais do que na primeira e, ao contrário dessa, sem números desconexos: eram palavras, soltas, unidas, frases rabiscadas, traços retos e curvos, a pontuação forte, quando havia alguma. Junto às folhas, restos de lápis e canetas sem tampa abrigavam-se na última gaveta, manchada em todos os cantos.
Um raio explodiu atrás das colinas distantes. Ao pegar algumas folhas avulsas da gaveta, Damien sujou o polegar de azul, próximo à unha curta. Passando os olhos sobre o material, o menino percebeu alguns versos, nenhum formando um poema completo.
“Não sei como, mas tenho que confessar...”.
E na folha seguinte:
“Meu (um amor rabiscado) castigo...”.
E na detrás:
“Se sou humano e respiro
Quero ser uma pedra, dura e fria
Quero morrer à noite, sem luz do dia
Presa num cubo, a vida que me refiro”.
“Bonito”, opinou Damien para si mesmo.
A chuva ia e vinha com o vento lá fora. Largou as folhas da mão, devolveu-as à gaveta. Eram tantos pedaços sujos, alguns rasgados. Um inclusive tinha a impressão de uma sola de calçado. Estava quase fechando a gaveta quando uma das folhas, retirada de um caderno, lhe chamou a atenção. A letra estava mais caprichada, os traços mais fortes, as voltas mais delineadas, decoradas. Era outro pequeno trecho, mas que mexeu intensamente com Damien, mais que muitos poemas transpostos em páginas de um livro.
“Farei do teu suor
Perfume da minha essência
E chorarei, chorarei...”.
Damien leu e releu várias vezes, cada vez mais impressionado com a profundidade de simples palavras, insignificantes somente para seres insensíveis ou infelizes ignorantes, no seu pensamento. “É tão belo quanto...”. Reabriu a terceira gaveta. Retirou as fotografias novamente e espalhou-as sobre a escrivaninha, com o poema ao lado. Com a mão sobre as fotos, espalhou-as como um arco ao redor da folha avulsa, e admirou todas elas.
“E chorarei, chorarei...”.
“Por que ele chora?”, se perguntava Damien. Mas era tudo tão óbvio.
“Há motivos para se chorar?”.
- Obrigado, Jeffrey – dissera Damien, pelo elogio recebido. Era o banho somente, não havia posto perfume algum.
- Ah, já falei que adoro ouvir você me chamando assim? – perguntou o homem, encostando a cabeça no ombro de Damien. – Todo mundo que eu conheço só me chama de “Sr. Lewis” o tempo todo, e a maioria é pessoal íntimo. Tudo bem, é sinal de respeito, cordialidade, mas cansa, e irrita tanto, menino... Se você soubesse...
Jeffrey tinha maior estatura que Damien, e mesmo assim parecia uma criança se queixando ao pai que afaga sua cabeça, apertando-o próximo ao corpo.
- Damien, posso perguntar uma coisa? Seja sincero. Você... você gosta de mim?
Silêncio.
- Gosto.
- Oh, Damien, você é tão lindo. Nunca deixe que digam o contrário. Lindo! Como pode? Um menino assim, jovem, ser tão amável, tão puro! Você é um anjo, Damien.
Outro momento de silêncio. Damien encarava a maçaneta da porta. Jeffrey continuava seu monólogo.
- Um dia, eu queria que você me contasse da sua vida, dos seus problemas, do que lhe incomoda. Eu gosto muito de você, Damien, demais. Seria capaz de dizer que te amo, todo dia penso em você, e todo dia sorrio ao lembrar que você existe.
A maçaneta era prateada, e um feio arranhão se destacava perto da fechadura.
- Você é uma das poucas pessoas que... não, você é a única pessoa que consegue me entender, consegue ver o que eu vejo, que me faz sentir bem sendo quem eu sou. Conheço tanta gente e nenhuma delas eu consigo dizer que é minha amiga. Nem minha mulher, ou aquela... drogada da minha filha... Lembra do Tyler? Pois é, nem com ele era assim, você sabe, você deve lembrar, não faz muito. Sabia que ele me ligou?
Seria muito difícil alguém conseguir espiar pelo outro lado da porta. O buraco da fechadura era tão pequeno...
- É. Mas não vai dar em nada, de novo. E eu não gosto mais dele, não como antigamente – dizia, mordiscando os cantos da boca. - Não como eu gosto de você, Damien. Você é tão especial pra mim, tem idéia disso?
Em cima e embaixo da maçaneta havia um parafuso, o de cima um tanto frouxo.
- Mas eu não posso, é impossível. Não posso gostar de você, o que diriam? Digo, é inevitável ter tanto carinho por você, mas minha vontade mesmo era ter você por perto sempre, andando comigo, vivendo comigo, dormindo comigo. Oh, Damien, por que você nunca dorme aqui comigo?
Para abrir a porta, devia girar a maçaneta para o lado da tranca. Os olhos de Damien ardiam.
- Eu sei, eu sei. Sou chato mesmo. Você não pode. Se eu não posso tanta coisa, por que você não pode, não é? E eu não posso ter você do meu lado. Não posso.
O vento tremia o vidro da janela atrás da cama. Damien estava triste. Sentiu-se infeliz.
- Damien, minha preciosidade – gemeu Jeffrey, virando o corpo e deitando a face sobre o peito do menino. – Você me salva, a cada vez que eu lhe vejo. Obrigado.
Damien apertou Jeffrey ainda mais forte. Seu cliente precisava daquilo.
Seu cliente.
- Depois que eu pegar no sono, você está livre pra sair. Deixei o dinheiro embaixo das flores.
Silêncio. E o som estrondoso das lágrimas do menino ao rolaram pelos seus poros e finos pêlos juvenis. Puros, mas nem tanto.
Nem tanto.
Victor tossira forte, mas permaneceu de olhos fechados. Damien guardou as fotos na gaveta e fechou-a. Sentou-se na beirada da cama e sentiu a temperatura da toalha branca. Não estaria morna dentro de instantes. Fez o mesmo procedimento de outrora, e limpou a leve baba no canto da boca de Victor com o polegar. O mesmo polegar sujo de azul.
“Um menino assim, jovem, ser tão amável, tão puro! Você é um anjo, Damien”.
As pupilas de Victor tremeram quase imperceptíveis.
“Você é tão lindo”.
Damien era lindo, e mesmo todo o poder que tinha nas mãos jamais extinguiu seu medo.
Victor era ainda mais belo assim, adormecido. Encurvado, Damien deu-lhe um singelo beijo em uma das faces. Afastou-se. Sentou no chão, dobrou os joelhos, escorou a cabeça, e adormeceu.
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